Cheguei meio atrasado na conversa iniciada pelo colega Rodrigo Savazoni no 300 ('A morte de Steve Jobs, o inimigo número um da colaboração'), mas tenho que deixar registrada minha apreciação à iniciativa do post. O movimento da grande mídia em torno da morte do Steve Jobs beirou o ridículo -- o que não é novidade --, e portanto algum contraponto se fazia necessário.
Outra não-novidade é a tendência de muitos colegas em 'partidarizar' (e/ou polarizar entre esquerda e direita) todo e qualquer debate, o que resulta no empobrecimento da conversa. Mas como temos valorosos colegas participando da trédi, e na medida em que considero o tema pertinente, vou aqui apresentar os meus 'dois palitos'.
O que mais incomoda na questão são as motivações embutidas na beatificação midiática de Steve Jobs. Fica óbvia a intenção de mitificar o empreendedor genial, e de promover o modelo capitalista concentrador como vencedor histórico. Afinal, trata-se de alguém que conseguiu traduzir sua genialidade específica no que é hoje a empresa mais bem sucedida do planeta.
Este endeusamento reducionista da mídia em relação à Jobs acaba por mascarar a complexidade de um personagem que incorporou elementos em tese contraditórios em nome de sua própria arte. Me parece razoável afirmar que tivemos a oportunidade de experimentar diversos Steves no decorrer das últimas décadas, o que por si já recomenda evitar reducionismos ao avaliar seu legado.
Nas diversas etapas de sua vida, Steve copiou ('roubou'?), criou, remixou, diversificou, abriu e fechou, e principalmente ousou, com seu 'culhão do tamanho do universo' (boa, Jomar!). Sua personalidade sofisticada o permitiu enxergar as enormes oportunidades que o modelo open apresentou para o mundo da tecnologia à partir dos anos 90, e isto lhe proporcionou a vantagem competitiva necessária para criar e ao mesmo tempo ocupar as novas dimensões do mercado na cultura digital do século 21.
Uma pertinente análise da personalidade de Jobs foi apresentada por Doc Searls há 13 anos atrás no momento em que a Apple, com seu fundador de volta após um exílio sabático extremamente proveitoso, decidia aniquilar a nascente indústria de clones do Mac. Doc assim resumia a mensagem de Jobs ao mundo: "tudo o que quero de vocês é o seu dinheiro, e sua apreciação à minha Arte".
"Steve é um elitista e um inovador, com desempenho extraordinário em ambas categorias. Seus maiores êxitos são obras que inovam em beleza e estilo. Independente de seu impacto no mercado (que no caso de Lisa e NeXT foi desapontador), todos os seus projetos são como realizações artísticas. São também criações que inventam novas necessidades ('mother necessity'), que é a lógica que em geral opera nas inovações radicais." ('Doc Searls on Steve Jobs' 04/09/1997)
Uma outra situação que ilustra a percepção sofisticada de Steve Jobs está registrada em post de fev/2007 do ecodigital, por ocasião da publicação do 'manifesto' 'Thoughts on Music', onde ele propõe o fim do DRM nos arquivos de música vendidos on-line.
Em tese, era de se espantar que o dono da companhia que mais lucrava com o modelo de negócio baseado em DRM -- o ecossistema iTunes/iPod - viesse a público propor uma total virada nas regras do jogo. Na época eu comentava que um fator importante para o movimento seria a pressão da UE sobre o modelo de negócio do ambiente iTunes basado em DRM:
"De forma oportuna e genial, Jobs passa a bola para as 'majors', que são as 4 grandes gravadoras que dominam o mercado mundial da música, e cuja maior parte do capital encontra-se na Europa" ('Steve Jobs propõe fim do DRM', 07/02/2007).
Portanto, apesar de saudar o post do colega Savazoni em seu aspecto provocador, não me sinto contemplado com este 'novo dualismo' que coloca de um lado os que cercam o conhecimento livre, de outro os que estimulam o compartilhamento. Tendo a achar que aqueles que desenvolvem uma percepção mais apurada das dinâmicas que tem pautado a evolução das ecologias digitais, logo percebem que é na dialética entre as lógicas livre e proprietária que emergem as estratégias mais adaptadas a este momento de transição de paradigma.
Obviamente, este entendimento agnóstico da dialética livre / proprietário não impede que tenhamos um ou outro desses lados como postura de vida, opção ideológica e prática declarada. Mas tal opção não deve excluir a avaliação estratégica de como melhor integrar estas lógicas opostas em uma dinâmica customizada para cada ocasião e setor específicos.
Como diria o colega Michel Bauwens, "onde o horizontal encontra o vertical, surgem muitas adaptações diagonais híbridas". Steve Jobs tornou-se um mestre criador destes arranjos ortogonais, e sua ênfase proprietária dos últimos anos -- influência da doença, talvez -- acabou por se tornar fator determinante para o papel da Apple neste século. O iPad sem entrada USB é símbolo indelével desta tendência discutível.
De qualquer forma, a genialidade das implementações de Jobs nos apresenta a oportunidade de discutir o futuro operando seus gadgets no presente. Cabe a cada um de nós entender e discernir as soluções apropriadas para o futuro que desejamos, construindo as 'adaptações diagonais' que melhor respondem aos desafios do nosso tempo, e do nosso espaço.
Ao final, não há como não saudar a passagem deste artista brilhante por nossas vidas. Valeu, Steve!
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