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sexta-feira, setembro 30, 2016

Haddad, Uber, e o gestor público do século 21

O objetivo do post é colocar em foco notícia divulgada no último fim de semana — “Haddad revoga resolução sobre sigilo de dados de empresas de transporte” — , a qual pode ter passado desapercebida aos interessados em temas como economia digital, a chamada ‘sharing economy’ [economia do compartilhamento(?)], e também questões de privacidade de dados pessoais, assim como políticas de dados abertos e acesso à informação. A decisão do prefeito se insere na abordagem inovadora adotada por sua gestão na regulamentação dos ‘serviços de transportes individuais de passageiros via aplicativos’. Cabe reconhecer a habilidade da iniciativa em permitir a inovação no campo, mas tratando de impor limites. Destaca-se a firmeza em buscar garantir o mais importante: o compartilhamento das informações geradas pelo uso que os cidadãos fazem destes serviços, e que são coletadas por parte do Uber e afins.
O compartilhamento de dados é o coração da regulamentação. A ideia da gestão Haddad, que chegou a ser elogiada pela Uber, é cobrar R$ 0,10 a cada km rodado nos carros das empresas. Para fiscalizar isso, as empresas teriam de compartilhar seus dados, como número de motoristas, número de clientes, número de viagens feitas e quantidade de quilômetros rodados em cada viagem. As demais empresas do ramo já cadastradas — Cabify, EasyGo, 99POP e outras — estão cumprindo as regras, e fornecendo seus dados à Prefeitura. Só a Uber não.
Haddad diz que sigilo a dados da Uber e outras firmas é irregular e manda revogar resolução — Estadão
Seguindo um padrão global de atuação, o Uber utiliza o poder de fogo de seu volumoso capital de risco acumulado para tomar de assalto mercados estabelecidos. Faz parte de sua estratégia o cortejo a políticos e burocratas através de lobby agressivo, buscando influenciar iniciativas locais de regulação. A rápida expansão global do Uber vale-se da incapacidade dos gestores públicos em regular sua atuação e taxar devidamente os lucros aferidos. Menos evidente é o fato de seu modelo de negócio basear-se na operação de algoritmos sobre enormes bases de dados compostas por informações geradas pelos cidadãos na utilização que fazem destas plataformas. Por isso a relutância do Uber em abrir seus dados.
Em 2013 a Califórnia se tornou o primeiro estado dos EUA a aprovar uma regulamentação para o ‘ridesharing’ — lei cuja concepção contou com participação significativa do Uber. Entretanto, a participação no desenho da lei não evitou que a empresa tenha descumprido cláusulas que exigem o compartilhamento de alguns de seus dados com as bases de dados públicas. Dados como o número de viagens por código postal, a remuneração dos motoristas, além de informações sobre acidentes e o número de veículos adaptados para cadeirantes. Em 2016 o Uber foi obrigado a pagar multa de US$ 7.6 milhões para violar a lei estadual que exige o compartilhamento destes dados.
Is Uber the next big thing that goes kaput? This guy thinks so. — The Washington Post
Por estes e outros motivos, a capacidade de bem regulamentar serviços como o Uber pode ser considerada um diferencial para a avaliação de um gestor público contemporâneo. Neste aspecto, o processo conduzido pelo prefeito Fernando Haddad conta com reconhecimento internacional.
..o maior truque do Uber é convencer algumas das maiores cidades do mundo que, quando se trata de tráfego, ele não existe. Mas não pense que o município de São Paulo, Brasil, está entre os enganados. A metrópole conhecida por extensos engarrafamentos propôs recentemente um plano ousado, aparentemente sem precedentes, para o gerenciamento de Uber, Lyft, e outros serviços de transportes individuais de passageiros via aplicativos, os quais ameaçam, por um lado, entupir nossas ruas de carros, e por outro, dissuadir os funcionários públicos a fazer qualquer coisa para impedir que isto aconteça.
São Paulo Offers the Best Plan Yet for Dealing With Uber — CityLab
Em uma avaliação mais detalhada publicada no site do Banco Mundial, fica evidenciado o diferencial estratégico da proposta paulistana, referente ao compartilhamento de dados.
Este regulamento proposto para São Paulo constitui uma melhoria em relação à recente e pioneira regulamentação posta em prática na Cidade do México, que cobra uma taxa fixa de 1,5% por viagem de serviços de mobilidade compartilhados. A proposta confere à cidade maior flexibilidade na concepção e implementação de incentivos para as empresas transnacionais implantarem serviços que complementam os transportes públicos e os táxis em períodos fora de pico, particularmente em áreas pouco servidas e para as populações carentes. Além disso, o decreto exige que as empresas transnacionais forneçam para o município de São Paulo dados sobre origens de viagem e destinos, tempos, distâncias e trajetos, preço e avaliação do serviço. Estes dados, anonimizados, são de valor inestimável se fornecidos em tempo real e se a cidade tiver a capacidade de analisá-los para fazer uma melhor utilização da rede viária e dos serviços de transporte que regula. Felizmente, São Paulo estabeleceu um laboratório de análises de mobilidade urbana (Mobilab) com profissionais do transporte, computadores e cientistas de dados para esta tarefa.
Sao Paulo’s Innovative Proposal to Regulate Shared Mobility by Pricing Vehicle Use — The World Bank
Ao impedir a entrada em vigor de uma resolução burocrática municipal que flexibilizava as obrigações do Uber em compartilhar seus dados, conforme estabelecido em Decreto regulamentado através de consulta pública, o prefeito Haddad mais uma vez demonstra sua sensibilidade ao que realmente importa na questão.
Na resolução emitida, o município proíbe que informações como a quantidade de motoristas e veículos a serviço da Uber se tornem públicas. Haddad não quis emitir uma posição sobre o conteúdo do parecer a falou que a comissão competente vai avaliar tecnicamente a questão. “Aquilo que for sigilo do cidadão e a concorrência tem que ser preservados, todo o resto tem que ser liberado”, afirmou.
Comissão pulou uma etapa, diz Haddad sobre sigilos da Uber — IstoÉ
A criação da Comissão Municipal de Acesso à Informação como instância intersetorial competente para promover a política de dados abertos é instrumental como complemento à abordagem inovadora da gestão. ODecreto Nº 56.519, de 16/10/2015, que "estabelece procedimentos para garantir o direito de acesso à informação", é a base legal utilizada pelo prefeito para revogar a resolução golpista do Uber. Engenhoso!
A Comissão Municipal de Acesso à Informação (CMAI) foi criada por meio do decreto no. 53.623/2012, que regulamentou a Lei de Acesso à Informação no município de São Paulo. É formada pelos titulares de sete secretarias: Secretaria do Governo Municipal (SGM), Secretaria de Negócios Jurídicos (SNJ), Secretaria-Executiva de Comunicação (SECOM), Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico (SF), Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão (SEMPLA), Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e Controladoria Geral do Município (CGM).
Comissão Municipal de Acesso à Informação — CMAI
É importante acompanhar a implementação da regulamentação proposta pela gestão do prefeito Fernando Haddad em São Paulo de modo a aferir seus resultados e consequências. Entretanto, já podemos afirmar que sua abordagem está em sintonia com o que se espera de um gestor público do século 21.
Como os usos da inteligência artificial seguem em acelerada expansão, a sociedade cada vez mais enfrentará questões e demandas em torno do poder que essas tecnologias podem e devem ter. À medida que avançamos para a regulamentação, precisamos questionar as narrativas oferecidas pelas empresas, e certificar-nos de que a política reflete a realidade.
The Mirage of the Marketplace: The disingenuous ways Uber hides behind its algorithm. — Slate

“Na sociedade em rede, os dados produzidos pelos cidadãos, ou em seu nome, são a força motriz da economia e da nação — o [Estado] tem a responsabilidade de tratar esta informação como precioso recurso nacional”

’SNIIC, uma plataforma para o século 21’

terça-feira, agosto 02, 2016

Aos que choram pelo Yahoo!

Doc nos lembra que as principais vítimas da implosão do Yahoo, seus usuários, não merecem qualquer atenção da mídia especializada. Toda ênfase é colocada na venda para a Verizon, gigante telecom dos EUA, por US$ 4,8 bilhões, ou no que restou -- US$ 41 bilhões em participação na chinesa AliBaba, no Yahoo Japan e em um pequeno portfólio de patentes.
O subtítulo da matéria de Maya Kosoff na Vanity Fair, "Não chore pelo Yahoo", é indicativo: "Quando grandes empresas de tecnologia falham, têm apenas a si mesmas para culpar". A abordagem pressupõe que a única coisa que interessa no caso Yahoo para o público é a própria empresa, e Marissa Mayer, 'celebridade ex-Google' e CEO fatal da empresa. Ignora-se os milhões de usuários e clientes pagantes que confiaram em Yahoo para o seu e-mail, seus grupos, suas listas, suas fotos.
Como usuário do Flickr, estou mobilizado. Trata-se de serviço que teria considerável valor de mercado como uma empresa ou serviço autônomo, se o Yahoo não tivesse insistido em se livrar de namespace do Flickr para cada membro, substituindo pelo login Yahoo. 
Doc sintetiza apontando um fato que vem passando desapercebido na mídia: nenhuma empresa é mais importante do que o que ele faz para seus usuários e clientes. E de fato, não há quase nada na cobertura da crise do Yahoo a explorar essa dimensão óbvia -- aquilo pelo qual realmente devemos chorar em toda esta tragédia do Yahoo.
A matéria de David Gelles no NYTimes, "Yahoo e o Universo Online conforme a Verizon", traz outro subtítulo revelador: "Ao comprar o Yahoo, a Verizon está se preparando para o dia em que seus clientes mais importantes serão os anunciantes, e não os usuários". Gelles demonstra que o objetivo da compra é competir com Google e Facebook em publicidade digital, através do compartilhamento de dados sobre os seus clientes online com os anunciantes.
Em tempo: A falência do Flickr / Yahoo nos lembra o quanto estamos defasados em termos de uma política pública para a memória digital. São muitos os casos de instituições de memória que utilizam o Flickr para divulgar suas coleções de imagens, e vou mencionar aqui apenas dois ícones: a British Library (1.023.714 imagens) e a Nasa (com suas inúmeras contas). Entretanto, com tamanho risco colocado ao nosso direito à memória pelo atual cenário das plataformas digitais corporativas, políticas digitais de cultura não são do interesse do governo interino.
Linkania:



Uber desiste da China (!!!)

Apesar da intensa concorrência local, o mercado chinês era dos maiores para o Uber no número total de corridas. A operação chinesa era projeto pessoal do co-fundador Travis Kalanick, que viajava regularmente para o país e fazia discursos onde figurava jargão dos funcionários do Partido Comunista Chinês. Seu interesse foi reforçado por milhares de milhões de dólares em investimentos.
Mas na segunda-feira, o Uber, conhecido mundialmente por atos de competição impiedosa, acenou a bandeira branca. Em um forte sinal do quão difícil é para as empresas de tecnologia americanas prosperar na China, o Uber China anuncia a venda para a Didi Chuxing, seu rival local mais feroz.
Com o negócio, a empresa vai se juntar às fileiras de pares americanos, como Google e eBay, que foram incapazes de consolidar presença na China apesar dos investimentos e do foco aplicados. O EBay foi atropelado pelo Alibaba, enquanto o Google deixou a China após ver-se alvo de ataques cibernéticos patrocinados pelo governo.
Ainda assim, o negócio está longe de ser uma catástrofe financeira para o Uber, que por cerca de US $ 2 bilhões em investimentos no mercado chinês recebe uma parte de $ 7 bilhões em uma empresa que deve crescer. Dessa forma, o Uber economiza recursos para competir em outros projetos.
Em tempo: À salvo de políticas neoliberais desregulamentadoras e concentradoras, a China é "ironicamente o país que mais se desenvolveu nas últimas décadas e que melhor resistiu à crise". Logo a China, que tem o que a The Economist chama de “capital confinado”.
Veja:



domingo, outubro 09, 2011

Valeu, Steve!

Cheguei meio atrasado na conversa iniciada pelo colega Rodrigo Savazoni no 300 ('A morte de Steve Jobs, o inimigo número um da colaboração'), mas tenho que deixar registrada minha apreciação à iniciativa do post. O movimento da grande mídia em torno da morte do Steve Jobs beirou o ridículo -- o que não é novidade --, e portanto algum contraponto se fazia necessário.

Outra não-novidade é a tendência de muitos colegas em 'partidarizar' (e/ou polarizar entre esquerda e direita) todo e qualquer debate, o que resulta no empobrecimento da conversa. Mas como temos valorosos colegas participando da trédi, e na medida em que considero o tema pertinente, vou aqui apresentar os meus 'dois palitos'.

O que mais incomoda na questão são as motivações embutidas na beatificação midiática de Steve Jobs. Fica óbvia a intenção de mitificar o empreendedor genial, e de promover o modelo capitalista concentrador como vencedor histórico. Afinal, trata-se de alguém que conseguiu traduzir sua genialidade específica no que é hoje a empresa mais bem sucedida do planeta.

Este endeusamento reducionista da mídia em relação à Jobs acaba por mascarar a complexidade de um personagem que incorporou elementos em tese contraditórios em nome de sua própria arte. Me parece razoável afirmar que tivemos a oportunidade de experimentar diversos Steves no decorrer das últimas décadas, o que por si já recomenda evitar reducionismos ao avaliar seu legado.

Nas diversas etapas de sua vida, Steve copiou ('roubou'?), criou, remixou, diversificou, abriu e fechou, e principalmente ousou, com seu 'culhão do tamanho do universo' (boa, Jomar!). Sua personalidade sofisticada o permitiu enxergar as enormes oportunidades que o modelo open apresentou para o mundo da tecnologia à partir dos anos 90, e isto lhe proporcionou a vantagem competitiva necessária para criar e ao mesmo tempo ocupar as novas dimensões do mercado na cultura digital do século 21.

Uma pertinente análise da personalidade de Jobs foi apresentada por Doc Searls há 13 anos atrás no momento em que a Apple, com seu fundador de volta após um exílio sabático extremamente proveitoso, decidia aniquilar a nascente indústria de clones do Mac. Doc assim resumia a mensagem de Jobs ao mundo: "tudo o que quero de vocês é o seu dinheiro, e sua apreciação à minha Arte".
"Steve é um elitista e um inovador, com desempenho extraordinário em ambas categorias. Seus maiores êxitos são obras que inovam em beleza e estilo. Independente de seu impacto no mercado (que no caso de Lisa e NeXT foi desapontador), todos os seus projetos são como realizações artísticas. São também criações que inventam novas necessidades ('mother necessity'), que é a lógica que em geral opera nas inovações radicais." ('Doc Searls on Steve Jobs' 04/09/1997) 
Uma outra situação que ilustra a percepção sofisticada de Steve Jobs está registrada em post de fev/2007 do ecodigital, por ocasião da publicação do 'manifesto' 'Thoughts on Music', onde ele propõe o fim do DRM nos arquivos de música vendidos on-line. 

Em tese, era de se espantar que o dono da companhia que mais lucrava com o modelo de negócio baseado em DRM -- o ecossistema iTunes/iPod - viesse a público propor uma total virada nas regras do jogo. Na época eu comentava que um fator importante para o movimento seria a pressão da UE sobre o modelo de negócio do ambiente iTunes basado em DRM: 
"De forma oportuna e genial, Jobs passa a bola para as 'majors', que são as 4 grandes gravadoras que dominam o mercado mundial da música, e cuja maior parte do capital encontra-se na Europa" ('Steve Jobs propõe fim do DRM', 07/02/2007).
Portanto, apesar de saudar o post do colega Savazoni em seu aspecto provocador, não me sinto contemplado com este 'novo dualismo' que coloca de um lado os que cercam o conhecimento livre, de outro os que estimulam o compartilhamento. Tendo a achar que aqueles que desenvolvem uma percepção mais apurada das dinâmicas que tem pautado a evolução das ecologias digitais, logo percebem que é na dialética entre as lógicas livre e proprietária que emergem as estratégias mais adaptadas a este momento de transição de paradigma.

Obviamente, este entendimento agnóstico da dialética livre / proprietário não impede que tenhamos um ou outro desses lados como postura de vida, opção ideológica e prática declarada. Mas tal opção não deve excluir a avaliação estratégica de como melhor integrar estas lógicas opostas em uma dinâmica customizada para cada ocasião e setor específicos.

Como diria o colega Michel Bauwens, "onde o horizontal encontra o vertical, surgem muitas adaptações diagonais híbridas". Steve Jobs tornou-se um mestre criador destes arranjos ortogonais, e sua ênfase proprietária dos últimos anos -- influência da doença, talvez -- acabou por se tornar fator determinante para o papel da Apple neste século. O iPad sem entrada USB é símbolo indelével desta tendência discutível.

De qualquer forma, a genialidade das implementações de Jobs nos apresenta a oportunidade de discutir o futuro operando seus gadgets no presente. Cabe a cada um de nós entender e discernir as soluções apropriadas para o futuro que desejamos, construindo as 'adaptações diagonais' que melhor respondem aos desafios do nosso tempo, e do nosso espaço.

Ao final, não há como não saudar a passagem deste artista brilhante por nossas vidas. Valeu, Steve! 

sexta-feira, agosto 26, 2011

SNIIC: uma plataforma para o século 21


Na sociedade em rede, os dados produzidos pelos cidadãos, ou em seu nome, são a força motriz da economia e da nação — o governo tem a responsabilidade de tratar esta informação como precioso recurso nacional. Os cidadãos se conectam entre si pela rede hoje como nunca antes, e estão desenvolvendo as habilidades e o entusiasmo para resolver os problemas que os afetam localmente, assim como nacionalmente. No século 21, informações e serviços públicos podem estar disponíveis aos cidadãos onde e quando eles precisam. Mais do que nunca, os cidadãos estão desenvolvendo o poder de desencadear a inovação, que resultará em uma melhor abordagem para a governança. Neste modelo, o governo atua como organizador e facilitador, e não como o motor inicial da ação cívica.

Entendemos que a maneira correta de encaminhar uma estratégia moderna para a questão das aplicações e serviços públicos é através de uma plataforma aberta baseada no modelo ‘open data’ (dados abertos), que promova a inovação dentro e fora do governo. O desafio é desenvolver um sistema em que todos os resultados e possibilidades não sejam especificados de antemão, mas que evoluam através de interações entre o governo e seus cidadãos, da mesma forma em que os prestadores de serviços na web promovem a participação ativa de sua comunidade de usuários.

O SNIIC do Século 21: Dados Abertos e Participação Cidadã

Informações claras, confiáveis e atualizadas sobre o campo da Cultura são fundamentais para subsidiar tanto ao planejamento e às tomadas de decisão referentes às políticas públicas culturais, como também aos investimentos e ações dos setores privados. Por isso, o Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Políticas Culturais, está desenvolvendo o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC). O SNIIC, de criação obrigatória por lei, será um banco de dados de bens, serviços, infraestrutura, investimentos, produção, acesso, consumo, agentes, programas, instituições e gestão cultural, entre outros, e estará disponível para toda a sociedade.

Cabe ao Ministério da Cultura coordenar um processo de estruturação para os sistemas de informações locais, desde uma rede nacional. A partir das oportunidades que a formatação em rede implicam, o SNIIC visa a ser uma interface dinâmica e viva, que contribua para a produção, gestão e difusão da produção e da diversidade cultural brasileira. Dentro das novas estruturas de governança, o SNIIC será, também, um instrumento de transparência dos investimentos públicos no setor cultural, servindo como ferramenta de monitoramento e avaliação para os gestores e para toda a sociedade.

A novidade do SNIIC proposta pelo MinC está em unir o arcabouço técnico da web semântica e dos arranjos de transparência fundamentados no modelo ‘open data’ (dados abertos), com as potencialidades da participação direta da sociedade civil através de interfaces típicas das mídias sociais. Trata-se de qualificar o uso dos dados públicos pelos cidadãos interessados, e implementar ambientes e padrões que incentivem o desenvolvimento distribuído de aplicações e serviços, criados a partir de demandas locais. A estratégia é focar no design da participação buscando soluções simples, mínimas, que possam evoluir com a colaboração direta dos interessados. É o ‘governo como plataforma’.

Governo como plataforma

Os governos produzem quantidades impressionantes de dados, seja através de órgãos de pesquisa ou no decorrer de suas atividades. Estes dados em teoria são abertos para uso público nos regimes democráticos. Mas a utilização destes dados em aplicações e serviços não tem acontecido como desejado, uma vez que em sua maioria estes dados estão em formatos pouco amigáveis ou não estruturados para utilização em aplicações.

Quando estudamos um pouco mais o cenário não é difícil perceber que, mesmo quando os dados produzidos pelo governo estão disponibilizados em formatos adequados, ainda assim sentimos a ausência de elementos facilitadores ao desejável processo de apropriação do potencial destas informações pela sociedade. É neste espaço, na interface entre os dados públicos e o cidadão brasileiro do século 21, que enxergamos a oportunidade de aplicação do conceito do ‘governo como plataforma’, que orienta a concepção e implementação do SNIIC.

Esta visão parte do princípio de que, projetos que promovam a disponibilização inteligente de dados abertos e estruturados podem alavancar a inovação e posicionar o governo para realizar importante papel no surgimento de novos empreendimentos e modelos de negócio no ambiente digital. Estas novas aplicações e serviços, construídos a partir de protocolos e padrões de disponibilização abertos, poderiam ajudar as pessoas a acompanhar de maneira mais efetiva como estão sendo utilizados os recursos do estado, e promover a participação cidadã no curso das políticas públicas do país, dos estados e das cidades.

Além disso, o modelo ‘governo como plataforma’ contempla uma dimensão que consideramos estratégica. Neste cenário, o estado pode também se posicionar como facilitador no processo de captação e organização dos dados do setor privado para o uso público. O modelo contempla, por exemplo, como companhias de telefonia, energia e transportes, que em boa parte de suas atividades dependem de concessões do estado, poderiam servir como fonte de dados para inúmeras aplicações que poderiam ajudar o dia a dia da população, além de gerar novas oportunidades de negócios e empregos. 

Em nossa avaliação, esta perspectiva aplicada ao campo da cultura oferece cenários ainda mais promissores. Tomando como exemplo o fato de que o SNIIC irá disponibilizar informações sobre os equipamentos culturais existentes no país, podemos facilmente imaginar que os dados dinâmicos de programação destes espaços poderiam ser fornecidos pelos interessados (produtores, gestores, cidadãos interessados, etc.), e disponibilizados em diferentes serviços que teriam como fonte a base de dados organizada e pronta para oferecer as informações em padrões e protocolos abertos. De onde enxergamos, esta seria apenas uma das dimensões possíveis de exploração no contexto do novo SNIIC.


Tipologia e Arquitetura de Informação para o SNIIC

Quando nos dispomos a implementar um sistema que pretende organizar as informações referentes ao universo da cultura de um país, o primeiro grande desafio a enfrentar é o consenso em torno de uma tipologia. O acordo em torno da lógica de classificação das informações é fundamental, pois a partir desta definição é que se torna possível desenvolver séries históricas para os dados coletados, viabilizando as comparações e os indicadores necessários para a construção e o monitoramento da implementação das políticas públicas. 

Como em nosso caso o país em questão é o Brasil, eu diria que acrescentamos ao processo de definição de uma tipologia de cultura dois elementos locais peculiares. Por um lado, a imensa e dinâmica diversidade cultural brasileira, e por outro, o fato de que todos nós desenvolvemos opiniões diversas sobre cultura, e cultivamos a tendência nativa de externar esta diversidade de pontos de vista regularmente em nosso dia-a-dia. Ou seja, constitui tremendo desafio definir uma tipologia que contemple a diversidade cultura brasileira, e ao mesmo tempo possa orientar as demandas de organização e classificação de dados de um sistema informatizado.

Para enfrentar este desafio, estamos buscando compatibilizar as demandas estruturais do sistema com um processo dinâmico de implementação da arquitetura de informação. Neste sentido, consideramos fundamental compartilhar com os interessados a proposta inicial de ‘Árvore Temática’ (abaixo), de acordo com os conceitos que orientam os processos colaborativos típicos do desenvolvimento em software livre (“release early, release often” – publique logo, publique sempre).

 

Abertura, transparência e arranjos colaborativos que fomentem a participação de todos os interessados, nos parece elementos fundamentais para a construção de um projeto com esta envergadura. Nada menos do que isso pode viabilizar a realização de um Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC, concebido para ser pautado pelos conceitos de ‘Dados Abertos’ e ‘Participação Cidadã’.

quinta-feira, julho 28, 2011

De como as comunidades P2P irão mudar o mundo - Entrevista com Michel Bauwens, criador da P2P Foundation



Muitos de vocês, ao ouvir as palavras "peer to peer", rapidamente se lembram do eMule ou do Napster, e da variedade de tecnologias e soluções para compartilhamento de arquivos que permitem a livre troca de conteúdos de qualquer tipo, assim como dos problemas associados e das controvérsias relacionadas à proteção dos direitos de autor.

Na verdade o termo P2P refere-se, desde há muito tempo, a um amplo espectro de soluções, paradigmas e abordagens centradas no co-design (design colaborativo) e na co-criação, na abertura (openness) e na liberdade: ou seja, estamos falando de cada meio (ferramenta) descentralizado, compartilhado e igualitário, utilizado para fornecer soluções livres e abertas para problemas comuns.

Tecnologias e plataformas tecnológicas (e o software em particular) são portanto, apenas um dos muitos aspectos desse movimento, o qual não impõe a si qualquer limite em sua abrangência: a meta de longo prazo é facilitar o surgimento e a consolidação de comunidades de pares (p2p) desenhadas para operar um novo papel na sociedade, o qual sempre foi prerrogativa de empresas e indústrias, de acordo com o modelo de produção capitalista de bens e serviços.

O modelo de produção entre pares está completamente em oposição ao neoliberalismo, mas é importante destacar que os processos P2P apresentam a capacidade de transformar, mas também de adaptar-se às estruturas sociais existentes. Esta síntese é talvez a única saída para os problemas históricos que a humanidade está enfrentando estes dias.

Plataformas e paradigmas abertos, igualitários e participativos, capazes de colocar as pessoas em contato direto entre si, demonstraram um enorme potencial nos últimos anos: com a missão de ajudar a outras alternativas p2p emergir e se consolidar, a "Fundação para Alternativas P2P" foi fundada por Michel Bauwens anos atrás.

Michel é um fantástico orador, pesquisador, analista e escritor: a pessoa ideal para nos ajudar a investigar os impactos que estas potenciais mudanças, especialmente as que são apresentadas nesta entrevista, podem vir a ter no futuro.


[Simone Cicero]: Qual é o papel do movimento p2p no mundo hoje? Qual o nível de adoção esse paradigma alcançou até agora?

[Michel Bauwens]: A minha resposta é que o movimento p2p tem um papel histórico muito importante a desempenhar, mas que é bastante difícil quantificar isso. Primeiro, o que queremos dizer quando falamos de um movimento p2p? O conjunto de causas subjacentes está ligado à horizontalização das relações humanas que é viabilizada pelas tecnologias p2p, entendida no sentido amplo de permitir a agregação de indivíduos livres em torno de valores compartilhados ou na criação de valor comum. Este é, naturalmente, uma grande mudança social.

Poderíamos argumentar que uma emergente vanguarda sócio-cultural está ativamente construindo novas formas de vida, novas práticas sociais e novas instituições humanas, algumas das quais eu tentei mapear aqui. Em todo o mundo estamos vendo emergir comunidades que estão desenvolvendo novas práticas sociais que são informadas pelo paradigma p2p. Em um outro nível esta é também uma revolução ética, que registra (1) o crescimento de valores fundamentais tais como abertura (openness, a qualidade de ser aberto) e liberdade em relação às 'entradas' (inputs) compartilhadas em processos de produção entre pares; (2) participação e inclusividade como elementos básicos do processo de cooperação; e (3) uma orientação ao 'commons' (distribuição universal) na gestão das saídas (outputs) do processo. Economicamente, por exemplo, um estudo recente estimou que o setor de conteúdo aberto nos EUA iria alcançar um sexto do PIB.

Finalmente, existem as novas expressões políticas. Eu considero as praças ocupadas na Europa como expressões desta emergente mentalidade p2p. Você poderia dizer que o movimento tem duas alas, uma ala construtiva de pessoas desenvolvendo novos instrumentos e práticas, como por exemplo descrito no livro de Chris Carlsson, 'Nowtopia', e uma ala mais ativa de resistência ao neoliberalismo, que está buscando formular novas maneiras de conceber as mudanças sociais, e que não são cópias carbono das abordagens da velha esquerda. No entanto, é importante ressaltar que este movimento está ainda em uma fase precoce de emergência, e não em nível de paridade com o mundo neoliberal mainstream.


[SC]: Como a produção p2p (colaborativa) é diferente do consumo colaborativo? Deveriam esses dois lados, produção e consumo, coexistir?

[MB]: É uma boa pergunta. A diferença está relacionada com a dificuldade de se implementar soluções p2p completas no atual sistema dominante. O arranjo para o consumo colaborativo é mais simples, e pode ser organizado por empresas que se encarregam da infra-estrutura do sistema que gerencia a aquisição coletiva do produto-serviço, que podem então investir em uma infra-estrutura compartilhada ou desenvolver uma plataforma para compartilhar o que já está disponível -- o que poderia ser feito por comunidades ou organizações sem fins lucrativos.

No caso da produção, a colaboração pode acontecer sem muita dificuldade na esfera imaterial do conhecimento, do código e do design, mas encontra muitos problemas no momento que tentamos traduzir em produção física, o que é caro. Nesta etapa, há uma co-dependência entre os pares produtores que estão criando valor, e as empresas com fins lucrativos que estão 'capturando esse valor', mas ambos precisam um do outro. Pares produtores precisam de uma ecologia de negócios para assegurar a reprodução social do seu sistema e a sustentabilidade financeira de seus participantes, e o capital precisa das externalidades positivas e da cooperação social que fluem da colaboração p2p.

A minha proposta é de que as comunidades de pares produtores devem criar seus próprios empreendimentos sociais com "missão orientada", de forma que a mais-valia possa permanecer com os criadores de valor, isto é, com os plebeus ('commoners') em si -- mas isso dificilmente aconteceria agora. Em vez disso o que vemos é uma adaptação mútua entre o capital netárquico (netarchical capital) de um lado, e as comunidades de pares produtores do outro. Onde o horizontal encontra o vertical, surgem muitas adaptações diagonais híbridas.

A questão crucial se torna então: "como é que vamos adaptar", quando é que a adaptação pode se tornar cooptação, se não pior, exploração pura. Pode-se dizer que esta é a luta de classes do século 21, entre as duas classes emergentes, que na minha opinião, serão os principais fatores na transição para um novo tipo de sociedade. Para os pares produtores a questão torna-se, se não podemos criar nossas próprias instituições totalmente autônomas, então como podemos adaptar, mantendo o máximo de autonomia e sustentabilidade como um bem comum, e como uma comunidade.

[SC]: Por que o paradigma p2p foi incapaz de criar alternativas bem sucedidas em algumas áreas? Por exemplo, no caso das redes sociais, iniciativas como o diáspora têm sido marginais até agora, e quedamos contando com entidades comerciais, por vezes corporações multinacionais, para empoderar a comunidade de pares a realizar grandes coisas (por exemplo, os movimentos no oriente médio). Existe um problema aqui? Quero dizer, em terceiro lugar: as entidades comerciais operando enormes comunidades de pares que criam valor, não lhes permite realizar lucros enormes?

[MB]: Na produção por pares orientada ao commons, onde as pessoas se agregam em torno de um objeto comum (o que requer uma profunda cooperação), eles costumam ter as suas próprias infra-estruturas de colaboração, contemplando uma ecologia que integra uma comunidade, uma associação com missão-orientada (for-benefit) para a gestão da infra-estrutura, e empresas orientadas ao lucro que operam diretamente no mercado; na economia de partilha, onde os indivíduos simplesmente compartilham suas próprias expressões, ser hospedado em plataformas de terceiros é a norma.

É claro que empresas com fins lucrativos têm prioridades diferentes, e desejam capturar o valor gerado para que este possa ser vendido no mercado. Esta é, na verdade, a luta de classes da era p2p, a luta entre comunidades e corporações em torno de questões diversas, em parte por causa de diferentes interesses. Assim, esta tensão é certamente um problema, mas como o exemplo colocado por você indica, não se trata de um obstáculo crucial. Mesmo plataformas comercialmente controladas estão sendo usadas para promover uma grande horizontalização e auto-agregação das relações humanas, e as comunidades, incluindo grupos políticos radicais, estão utilizando-as efetivamente para se organizar.

O importante é não se concentrar apenas sobre as limitações e as intenções dos donos da plataforma, mas usar o que pudermos para reforçar a autonomia das comunidades de pares. Às vezes, isso requer uma adaptação inteligente a seja lá o que for que o status quo já está produzindo. Questões importantes: quais meios 'imperfeitos' podemos usar para nosso próprio benefício; quais infra-estruturas precisam de fato tornar-se independentes de controle, e o que precisamos exigir dos proprietários das plataformas que 'exploram' o trabalho livre sem dar nada em troca. Por exemplo, o Fórum da Cultura Livre exige uma participação de 15% na receita gerada, a fim de sustentar os seus plebeus criativos.

O fato hoje é que o capital ainda é capaz de agregar vastos recursos financeiros e materiais, o que o torna capaz de gerar coisas como o Google, o YouTube, o Facebook, etc ... plataformas que podem facilmente e rapidamente oferecer serviços, criando efeitos de rede que são muito difíceis, embora não teoricamente impossíveis, de serem emulados por arranjos p2p "puros", que podem não ter a mesma facilidade de acesso aos recursos atraídos de forma rápida e eficiente pela mecânica do capital. O problema com o diáspora é que, sem os efeitos de rede, não há nenhum "lá" lá, apenas uma vazia plataforma em potencial. Se você quiser alcançar as pessoas, você ainda precisa estar onde eles efetivamente estão, ou seja, nas plataformas mainstream.

Entretanto, ativistas p2p devem funcionar em ambas as frentes, ou seja, utilizando plataformas mainstream para espalhar suas idéias e sua cultura de forma a atingir um maior número de pessoas, e ao mesmo tempo, desenvolvendo suas próprias ecologias de mídia autônoma, que podem operar de forma independente. O importante é manter um compromisso com o longo prazo, ou seja, com a construção lenta e cuidadosa de uma infra-estrutura alternativa para a vida.


[SC]: O bem comum (commons) é o real campo de aplicação do paradigma p2p, ou podemos pensar no p2p também sendo usado como um modelo potencial para aplicações de lucro?

[MB]: O commons e o p2p são apenas aspectos diferentes do mesmo fenômeno, o commons é o objeto que a dinâmica p2p está construindo, e o p2p ocorre onde há bens comuns. Lembre-se, eu não uso o termo p2p em um sentido puramente tecnológico, mas em um sentido sociológico, como um tipo de relacionamento. Portanto, tanto o p2p como o commons, como eles criam valor abundante (digital) ou suficiente (material) para os 'commoners' (os pares), estão em condições de, ao mesmo tempo, gerar oportunidades para criação de valor agregado para o mercado. Não há nenhum domínio que esteja excluído do p2p, nenhum campo que possa afirmar que "não seria mais forte através da abertura para a dinâmica da participação e da comunidade". E não há nenhuma comunidade p2p que hoje possa dizer: "estamos a longo prazo totalmente sustentável dentro do atual sistema, sem necessidade de recursos extras provenientes do mercado".


[SC]: Poderia a adoção de moedas p2p como Bitcoin facilitar a fusão de sistemas de produção de valor p2p com esquemas comerciais / do mercado?

[MB]: Temos que ter cuidado aqui. Uma tendência identificável é a difusão atual de infra-estruturas e arranjos, ou seja, a introdução de crowdsourcing, crowdfunding, empréstimo social, moedas digitais, ferramentas que promovem uma participação mais ampla do paradigma p2p nas práticas atuais. Isso é uma coisa boa, mas não suficiente. Todas as coisas que eu mencionei acima imprimem um movimento em direção de uma infra-estrutura distribuída, mas não alteram a lógica fundamental de que eles estão fazendo. No caso do bitcoin, trata-se de uma moeda que funciona com base em escassez, sujeita às mesmas forças especulativas que operam nos metais raros, e portanto totalmente sintonizada na lógica do capital, assim como os sites de empréstimos sociais etc... O que realmente precisamos é de uma segunda onda de infra-estruturas de distribuição, que também possam incorporar novos valores éticos. Bitcoin poderia funcionar com demurrage por exemplo, ou no contexto de um crédito do commons. Empréstimos sociais poderiam ser usados para investimento de "dinheiro lento" em empreendimentos éticas ou comunidades. Sem isso, nós estamos falando da distribuição do capitalismo, e não sobre uma mudança mais profunda na lógica da nossa economia.


[SC]: Nós, mais e mais vezes, vemos soluções p2p criar atalhos onde os sistemas comerciais não funcionam ou não são suficientemente eficientes ou, simplesmente, são caro (às vezes exageradamente): como empresas à moda antiga poderiam adaptar-se ao p2p para evitar a sua desatualização, e a sua superação por alternativas baseadas em p2p?

[MB]: Não importa o quanto você é bom, não importa o quanto de capital você tem para contratar as melhores pessoas, você não pode competir com o potencial de inovação das comunidades abertas globais. É isso que impulsiona todos os negócios a se adaptarem, de uma forma ou de outra, à dinâmica p2p. Como uma empresa, você tem mais inovação, uma articulação mais profunda nas redes, estruturas de custo mais baixo, e muitas outras vantagens competitivas. Mas tudo isso vem com um preço, ou seja, a necessária adaptação às regras e normas da nova cultura em rede, e às comunidades em particular nas quais você está trabalhando. E o oposto também está acontecendo, como descrevemos acima, mais e mais comunidades orientadas para o bem comum (commons-oriented) estão criando suas próprias coligações empresariais. É claro, certo tipo de empresas, por causa de suas posições de monopólio e de seus sistemas legados, terão um período muito difícil nesta adaptação, o que cria o cenário para que novos players apareçam em condições de responder de forma mais efetiva.


[SC]: É necessário um "novo tipo de empresa" para incorporar o modelo de produção p2p, ou um novo tipo de "comunidade" para incorporar os aspectos comerciais, o lucro?

[MB]: Com certeza, o modelo corporativo é incapaz de lidar com as questões ecológicas e de sustentabilidade, porque o seu próprio DNA, a obrigação de legal de enriquecer os acionistas, o faz se esforçar para reduzir os custos de entrada, e ignorar as externalidades. Para uma empresa com fins lucrativos, o que é legal é ético, e a regulação externa pode apenas moderar tais comportamentos. Isto significa que "regulação" também deve ser interna, e para isso, precisamos de novas estruturas corporativas, um novo tipo de entidade do mercado para o qual o lucro é um meio, mas não um fim, dedicado a um "benefício", uma missão, ou ao sustento de uma determinada comunidade e / ou commons. Seguindo lasindias.net, eu uso o conceito de phyles. e a própria Fundação P2P criou como que uma cooperativa global que visa tornar o trabalho no commons do conhecimento P2P sustentável. Estas novas entidades devem se tornar o núcleo de um novo setor privado, e que são estruturalmente inerentemente sustentável.


[SC]: Há uma ligação especial entre a crise de recursos, a alta do petróleo, e os temas de sustentabilidade em geral, com o movimento p2p? Sustentabilidade seria um atributo substancial dos sistemas p2p, coletivos, descentralizados?

[MB]: Eu costumo argumentar fortemente sobre este link. Na minha opinião, empresas com fins lucrativos são inerentemente não-sustentáveis em seu DNA, porque dependem de escassez, ou seja, a abundância destrói a escassez e, portanto, abala os mercados; um exemplo de prática perniciosa em particular é a obsolescência planejada. Mas uma comunidade aberta de design, por exemplo, não funciona com base nesses incentivos perversos, e naturalmente desenvolverá projetos voltados para a sustentabilidade. Tais coletivos irão desenvolver projetos voltados para a inclusão, de forma a permitir que outros possam adicionar novos elementos ao projeto e, finalmente, também irão desenvolver formas mais distribuídas de fabricação, que não necessitem de centralização financeira e geográfica.

A E-cars por exemplo, produz projetos abertos para carros híbridos, de modo que qualquer mecânico no mundo pode fazer o download do projeto e trabalho em seu carro localmente. O 'Common Car' é projetado modularmente, com uma pele biodegradável que pode ser trocada sem a necessidade de um carro novo completo. Isto significa que os empresários, agregando-se para abrir projetos de design colaborativo, começariam a trabalhar a partir de um espaço totalmente diferente, mesmo que eles ainda utilizem a forma clássica de empresa. Evitar o compartilhamento de projetos de sustentabilidade por meio de monopólios de propriedade intelectual também é, na minha opinião, antiético, e a existência de tais patentes deveria ser pautada por uma perspectiva minimalista, jamais por uma lógica maximalista.


[SC]: Como é o seu sentimento hoje sobre as perspectivas "high road" e "low road"?

[MB]: O cenário "high road" propõe um governo esclarecido, que "promove e empodera" a produção social e a criação de valor, e permite uma transição mais suave para os modelos p2p; o cenário "low road" é aquele em que nenhuma reformas estrutural acontece, a situação global desemboca em diferentes formas de caos, e o p2p torna-se uma tática de sobrevivência e resistência para enfrentar as extremamente difíceis circunstâncias sociais, políticas e econômicas que virão. O problema hoje é que os movimentos sociais são demasiado fracos para impor reformas estruturais, apesar de que esta situação poderia mudar e está mudando enquanto nós falamos aqui, veja as mobilizações nas praças europeias. O outro aspecto importante é que o clássico ciclo econômico de 60 anos, conhecido como "onda Kondratieff", se encerra com o colapso de 2008, o que é agravado pela crise da biosfera e outros (alterações climáticas, a sexta grande extinção, o pico do petróleo), que na minha opinião configuram sinais do declínio acelerado do capitalismo. Apesar de estar confiante de que o modelo de crescimento infinito está se aproximando do fim, isso não significa, naturalmente, que o que vai substitui-lo será melhor. Trabalhar para construir uma alternativa melhor é realmente a tarefa histórica do movimento p2p. Em outras palavras, depende de nós!


[SC]: Quais são as próximos aplicações potencialmente revolucionárias do modelo P2P?

[MB]: Eu realmente não penso em termos de avanços ou revoluções tecnológicas, porque a platafroma fundamental, a rede global de inteligência coletiva viabilizada pela internet, já existe entre nós. Esta é a grande mudança, e todos os outros avanços tecnológicos serão informados por esta nova realidade social caracterizada pela horizontalização de nossa civilização. O importante agora é defender e ampliar nossos direitos de comunicação e organização, mobilizando-nos contra as tentativas concertadas para voltar o relógio. Enquanto posso afirmar que voltar no tempo é realmente uma impossibilidade, isso não significa que as tentativas de governos e grandes corporações sejam incapazes de criar grandes danos e dificuldades.

Precisamos de tecnologia p2p para viabilizar o desenvolvimento de soluções globais para as crises sistêmicas que estamos enfrentando. Retardar este processo, de fato, põe em risco o futuro da Terra e da humanidade. Estamos vivendo em um sistema bio-pático, que literalmente destrói a base da vida humana e natural; e o p2p é necessário para assegurar a transição para uma civilização biofílica, o que pode garante a continuidade do nosso habitat natural e de suas dádivas para a humanidade. A tecnologia é apenas uma ferramenta, embora muito importante, para a transformação, mas devemos evitar qualquer determinismo tecnológico, bem como as utopias equivocadas que ficam a depender do próximo grande avanço mágico da tecnologia.