Na rede

quinta-feira, setembro 15, 2011

O Fórum da Internet do Brasil e a identidade digital


Este texto foi originalmente redigido como um comentário às "Provocações iniciais sobre conteúdos digitais e compartilhamento" de Rodrigo Savazoni, no espaço do I Forum da Internet do Brasil. [updated]


“Muito bom ver o debate começando por aqui! Aliás, esta iniciativa de um Fórum aberto do CGI.br já estava mais do que madura para acontecer, e vem em momento importantíssimo. Que bom!

Sobre esta questão da “nova ecologia da distribuição da informação e do conhecimento”, sobre a qual temos refletido e debatido com afinco, me parece claro algumas coisas:

Tudo se encaminha para a situação em que alguns grandes players do mercado tenham o controle sobre os padrões e protocolos que irão formatar o “jeito” como as coisas irão se dar no mundo digital do século 21.

A revolução da Abertura (openness), no que se refere ao acesso aos conteúdos digitalizados na rede, trouxe um novo fôlego para processos culturais valiosos, e proporciona as ferramentas básicas para este novo estágio da civilização — a cultura p2p.

Mas estamos diante de um processo de desenvolvimento distorcido, que se por um lado inclui e empodera amplas fatias da sociedade, por outro tem gerado uma acumulação indevida por parte dos grandes agregadores da rede.

Operados com a lógica do mercado, e subordinado a interesses geopoliticos, estes grandes players seguem avançando em escala global, e assim acumulando poder de definição dos padrões que irão cada vez mais formatar o ecossistema da rede.

Em meio a esta reflexão, que talvez se relacione com outras trilhas do Fórum, lancei uma pergunta no G+: Quem é que pode definir padrões hoje na rede?

Me chamou atenção este caso do Google lançar uma alternativa ao javascript, e foi para mim a evidência de que os grandes da rede são os que hoje podem bancar novos padrões. São estes mesmos gigantes, corporações estrangeiras como o Facebook, que gerenciam os grandes ambientes das redes sociais, dominando assim o processo estratégico de desenvolvimento destes protocolos que irão formatar a inter-relação via rede no século 21.

Neste cenário, imagino se seria possível a uma iniciativa pública, apoiada pelo estado mas governada de forma compartilhada com a sociedade, propor um protocolo básico extensível que viabilizasse a criação de uma plataforma pública aberta e comum.

Fico imaginando se algo como o Diáspora fosse adotado por um arranjo institucional como este. Seria possível alavancar um protocolo aberto e distribuído de identidade (open - user-centric - identity) como plataforma pública nacional?

E porque estou falando de open identity? Porque será através de um protocolo de identidade digital público e aberto, centrado nas demandas de privacidade e de direitos autorais dos usuários, que poderemos criar as bases da economia p2p. Entretanto, são estes os protocolos estratégicos que estão sendo apropriados e dominados pela visão de corporações norte-americanas. 

Estamos neste momento acompanhando a tramitação da proposta da nova lei de direito autoral. Nela está inserido dispositivo que orienta a criação da plataforma de registro autoral, que projeta o grande banco de referências e links de toda a cultura.br.

Ao mesmo tempo, estamos vivendo um processo intenso de digitalização das coleções históricas de arquivos, bibliotecas, cinematecas, centros de pesquisa. A catalogação e disponibilização integrada destes acervos, aliada a metadados que possam prever formas de licenciamento inovadoras, viabiliza um cenário onde é possível gerar novos fluxos de retribuição autoral.

E por outro lado, cada vez mais os cidadãos brasileiros se transformam em usuários especialistas destes ambientes de mídias sociais, onde hoje efetivamente são desenvolvidos as aplicações e serviços baseados em identidade. Tais aplicações são orientadas ao aperfeiçoamento das estratégias publicitárias que financiam estes empreendimentos, mas ainda sim, é nestes espaços que efetivamente ocorre a indicação, uso e reprocessamento de conteúdo digital nos dias de hoje.

Enxergo aqui uma oportunidade histórica de provermos uma solução tecnológica em condições de responder aos desafios dos novos paradigmas, o que muitos chamam de economia criativa, mas que independente do nome deve necessariamente prever e estimular os arranjos de compartilhamento e construção colaborativa do conhecimento.

Neste cenário, o foco não deve estar no controle dos fluxos criativos, e sim no reforço de atribuição da identidade dos criadores, que somos todos nós.

A tecnologia, especialmente na lógica dos padrões abertos e do software livre, tem resposta para estas demandas. Mas estas respostas, da forma como às precisamos, não serão desenvolvidas pelas corporações que se criaram neste processo de agregação e apropriação da contribuição ‘anônima’. 

Enfim: na cultura digital, “Programe ou seja Programado”, não é mesmo?

Será que ainda existe a possibilidade de uma alternativa a este cenário dominado pelos grandes players da Internet? Na minha opinião, o papel do CGI.br nesta reflexão é central.

Seguimos conversando.

sexta-feira, agosto 26, 2011

SNIIC: uma plataforma para o século 21


Na sociedade em rede, os dados produzidos pelos cidadãos, ou em seu nome, são a força motriz da economia e da nação — o governo tem a responsabilidade de tratar esta informação como precioso recurso nacional. Os cidadãos se conectam entre si pela rede hoje como nunca antes, e estão desenvolvendo as habilidades e o entusiasmo para resolver os problemas que os afetam localmente, assim como nacionalmente. No século 21, informações e serviços públicos podem estar disponíveis aos cidadãos onde e quando eles precisam. Mais do que nunca, os cidadãos estão desenvolvendo o poder de desencadear a inovação, que resultará em uma melhor abordagem para a governança. Neste modelo, o governo atua como organizador e facilitador, e não como o motor inicial da ação cívica.

Entendemos que a maneira correta de encaminhar uma estratégia moderna para a questão das aplicações e serviços públicos é através de uma plataforma aberta baseada no modelo ‘open data’ (dados abertos), que promova a inovação dentro e fora do governo. O desafio é desenvolver um sistema em que todos os resultados e possibilidades não sejam especificados de antemão, mas que evoluam através de interações entre o governo e seus cidadãos, da mesma forma em que os prestadores de serviços na web promovem a participação ativa de sua comunidade de usuários.

O SNIIC do Século 21: Dados Abertos e Participação Cidadã

Informações claras, confiáveis e atualizadas sobre o campo da Cultura são fundamentais para subsidiar tanto ao planejamento e às tomadas de decisão referentes às políticas públicas culturais, como também aos investimentos e ações dos setores privados. Por isso, o Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Políticas Culturais, está desenvolvendo o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC). O SNIIC, de criação obrigatória por lei, será um banco de dados de bens, serviços, infraestrutura, investimentos, produção, acesso, consumo, agentes, programas, instituições e gestão cultural, entre outros, e estará disponível para toda a sociedade.

Cabe ao Ministério da Cultura coordenar um processo de estruturação para os sistemas de informações locais, desde uma rede nacional. A partir das oportunidades que a formatação em rede implicam, o SNIIC visa a ser uma interface dinâmica e viva, que contribua para a produção, gestão e difusão da produção e da diversidade cultural brasileira. Dentro das novas estruturas de governança, o SNIIC será, também, um instrumento de transparência dos investimentos públicos no setor cultural, servindo como ferramenta de monitoramento e avaliação para os gestores e para toda a sociedade.

A novidade do SNIIC proposta pelo MinC está em unir o arcabouço técnico da web semântica e dos arranjos de transparência fundamentados no modelo ‘open data’ (dados abertos), com as potencialidades da participação direta da sociedade civil através de interfaces típicas das mídias sociais. Trata-se de qualificar o uso dos dados públicos pelos cidadãos interessados, e implementar ambientes e padrões que incentivem o desenvolvimento distribuído de aplicações e serviços, criados a partir de demandas locais. A estratégia é focar no design da participação buscando soluções simples, mínimas, que possam evoluir com a colaboração direta dos interessados. É o ‘governo como plataforma’.

Governo como plataforma

Os governos produzem quantidades impressionantes de dados, seja através de órgãos de pesquisa ou no decorrer de suas atividades. Estes dados em teoria são abertos para uso público nos regimes democráticos. Mas a utilização destes dados em aplicações e serviços não tem acontecido como desejado, uma vez que em sua maioria estes dados estão em formatos pouco amigáveis ou não estruturados para utilização em aplicações.

Quando estudamos um pouco mais o cenário não é difícil perceber que, mesmo quando os dados produzidos pelo governo estão disponibilizados em formatos adequados, ainda assim sentimos a ausência de elementos facilitadores ao desejável processo de apropriação do potencial destas informações pela sociedade. É neste espaço, na interface entre os dados públicos e o cidadão brasileiro do século 21, que enxergamos a oportunidade de aplicação do conceito do ‘governo como plataforma’, que orienta a concepção e implementação do SNIIC.

Esta visão parte do princípio de que, projetos que promovam a disponibilização inteligente de dados abertos e estruturados podem alavancar a inovação e posicionar o governo para realizar importante papel no surgimento de novos empreendimentos e modelos de negócio no ambiente digital. Estas novas aplicações e serviços, construídos a partir de protocolos e padrões de disponibilização abertos, poderiam ajudar as pessoas a acompanhar de maneira mais efetiva como estão sendo utilizados os recursos do estado, e promover a participação cidadã no curso das políticas públicas do país, dos estados e das cidades.

Além disso, o modelo ‘governo como plataforma’ contempla uma dimensão que consideramos estratégica. Neste cenário, o estado pode também se posicionar como facilitador no processo de captação e organização dos dados do setor privado para o uso público. O modelo contempla, por exemplo, como companhias de telefonia, energia e transportes, que em boa parte de suas atividades dependem de concessões do estado, poderiam servir como fonte de dados para inúmeras aplicações que poderiam ajudar o dia a dia da população, além de gerar novas oportunidades de negócios e empregos. 

Em nossa avaliação, esta perspectiva aplicada ao campo da cultura oferece cenários ainda mais promissores. Tomando como exemplo o fato de que o SNIIC irá disponibilizar informações sobre os equipamentos culturais existentes no país, podemos facilmente imaginar que os dados dinâmicos de programação destes espaços poderiam ser fornecidos pelos interessados (produtores, gestores, cidadãos interessados, etc.), e disponibilizados em diferentes serviços que teriam como fonte a base de dados organizada e pronta para oferecer as informações em padrões e protocolos abertos. De onde enxergamos, esta seria apenas uma das dimensões possíveis de exploração no contexto do novo SNIIC.


Tipologia e Arquitetura de Informação para o SNIIC

Quando nos dispomos a implementar um sistema que pretende organizar as informações referentes ao universo da cultura de um país, o primeiro grande desafio a enfrentar é o consenso em torno de uma tipologia. O acordo em torno da lógica de classificação das informações é fundamental, pois a partir desta definição é que se torna possível desenvolver séries históricas para os dados coletados, viabilizando as comparações e os indicadores necessários para a construção e o monitoramento da implementação das políticas públicas. 

Como em nosso caso o país em questão é o Brasil, eu diria que acrescentamos ao processo de definição de uma tipologia de cultura dois elementos locais peculiares. Por um lado, a imensa e dinâmica diversidade cultural brasileira, e por outro, o fato de que todos nós desenvolvemos opiniões diversas sobre cultura, e cultivamos a tendência nativa de externar esta diversidade de pontos de vista regularmente em nosso dia-a-dia. Ou seja, constitui tremendo desafio definir uma tipologia que contemple a diversidade cultura brasileira, e ao mesmo tempo possa orientar as demandas de organização e classificação de dados de um sistema informatizado.

Para enfrentar este desafio, estamos buscando compatibilizar as demandas estruturais do sistema com um processo dinâmico de implementação da arquitetura de informação. Neste sentido, consideramos fundamental compartilhar com os interessados a proposta inicial de ‘Árvore Temática’ (abaixo), de acordo com os conceitos que orientam os processos colaborativos típicos do desenvolvimento em software livre (“release early, release often” – publique logo, publique sempre).

 

Abertura, transparência e arranjos colaborativos que fomentem a participação de todos os interessados, nos parece elementos fundamentais para a construção de um projeto com esta envergadura. Nada menos do que isso pode viabilizar a realização de um Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC, concebido para ser pautado pelos conceitos de ‘Dados Abertos’ e ‘Participação Cidadã’.

quinta-feira, julho 28, 2011

De como as comunidades P2P irão mudar o mundo - Entrevista com Michel Bauwens, criador da P2P Foundation



Muitos de vocês, ao ouvir as palavras "peer to peer", rapidamente se lembram do eMule ou do Napster, e da variedade de tecnologias e soluções para compartilhamento de arquivos que permitem a livre troca de conteúdos de qualquer tipo, assim como dos problemas associados e das controvérsias relacionadas à proteção dos direitos de autor.

Na verdade o termo P2P refere-se, desde há muito tempo, a um amplo espectro de soluções, paradigmas e abordagens centradas no co-design (design colaborativo) e na co-criação, na abertura (openness) e na liberdade: ou seja, estamos falando de cada meio (ferramenta) descentralizado, compartilhado e igualitário, utilizado para fornecer soluções livres e abertas para problemas comuns.

Tecnologias e plataformas tecnológicas (e o software em particular) são portanto, apenas um dos muitos aspectos desse movimento, o qual não impõe a si qualquer limite em sua abrangência: a meta de longo prazo é facilitar o surgimento e a consolidação de comunidades de pares (p2p) desenhadas para operar um novo papel na sociedade, o qual sempre foi prerrogativa de empresas e indústrias, de acordo com o modelo de produção capitalista de bens e serviços.

O modelo de produção entre pares está completamente em oposição ao neoliberalismo, mas é importante destacar que os processos P2P apresentam a capacidade de transformar, mas também de adaptar-se às estruturas sociais existentes. Esta síntese é talvez a única saída para os problemas históricos que a humanidade está enfrentando estes dias.

Plataformas e paradigmas abertos, igualitários e participativos, capazes de colocar as pessoas em contato direto entre si, demonstraram um enorme potencial nos últimos anos: com a missão de ajudar a outras alternativas p2p emergir e se consolidar, a "Fundação para Alternativas P2P" foi fundada por Michel Bauwens anos atrás.

Michel é um fantástico orador, pesquisador, analista e escritor: a pessoa ideal para nos ajudar a investigar os impactos que estas potenciais mudanças, especialmente as que são apresentadas nesta entrevista, podem vir a ter no futuro.


[Simone Cicero]: Qual é o papel do movimento p2p no mundo hoje? Qual o nível de adoção esse paradigma alcançou até agora?

[Michel Bauwens]: A minha resposta é que o movimento p2p tem um papel histórico muito importante a desempenhar, mas que é bastante difícil quantificar isso. Primeiro, o que queremos dizer quando falamos de um movimento p2p? O conjunto de causas subjacentes está ligado à horizontalização das relações humanas que é viabilizada pelas tecnologias p2p, entendida no sentido amplo de permitir a agregação de indivíduos livres em torno de valores compartilhados ou na criação de valor comum. Este é, naturalmente, uma grande mudança social.

Poderíamos argumentar que uma emergente vanguarda sócio-cultural está ativamente construindo novas formas de vida, novas práticas sociais e novas instituições humanas, algumas das quais eu tentei mapear aqui. Em todo o mundo estamos vendo emergir comunidades que estão desenvolvendo novas práticas sociais que são informadas pelo paradigma p2p. Em um outro nível esta é também uma revolução ética, que registra (1) o crescimento de valores fundamentais tais como abertura (openness, a qualidade de ser aberto) e liberdade em relação às 'entradas' (inputs) compartilhadas em processos de produção entre pares; (2) participação e inclusividade como elementos básicos do processo de cooperação; e (3) uma orientação ao 'commons' (distribuição universal) na gestão das saídas (outputs) do processo. Economicamente, por exemplo, um estudo recente estimou que o setor de conteúdo aberto nos EUA iria alcançar um sexto do PIB.

Finalmente, existem as novas expressões políticas. Eu considero as praças ocupadas na Europa como expressões desta emergente mentalidade p2p. Você poderia dizer que o movimento tem duas alas, uma ala construtiva de pessoas desenvolvendo novos instrumentos e práticas, como por exemplo descrito no livro de Chris Carlsson, 'Nowtopia', e uma ala mais ativa de resistência ao neoliberalismo, que está buscando formular novas maneiras de conceber as mudanças sociais, e que não são cópias carbono das abordagens da velha esquerda. No entanto, é importante ressaltar que este movimento está ainda em uma fase precoce de emergência, e não em nível de paridade com o mundo neoliberal mainstream.


[SC]: Como a produção p2p (colaborativa) é diferente do consumo colaborativo? Deveriam esses dois lados, produção e consumo, coexistir?

[MB]: É uma boa pergunta. A diferença está relacionada com a dificuldade de se implementar soluções p2p completas no atual sistema dominante. O arranjo para o consumo colaborativo é mais simples, e pode ser organizado por empresas que se encarregam da infra-estrutura do sistema que gerencia a aquisição coletiva do produto-serviço, que podem então investir em uma infra-estrutura compartilhada ou desenvolver uma plataforma para compartilhar o que já está disponível -- o que poderia ser feito por comunidades ou organizações sem fins lucrativos.

No caso da produção, a colaboração pode acontecer sem muita dificuldade na esfera imaterial do conhecimento, do código e do design, mas encontra muitos problemas no momento que tentamos traduzir em produção física, o que é caro. Nesta etapa, há uma co-dependência entre os pares produtores que estão criando valor, e as empresas com fins lucrativos que estão 'capturando esse valor', mas ambos precisam um do outro. Pares produtores precisam de uma ecologia de negócios para assegurar a reprodução social do seu sistema e a sustentabilidade financeira de seus participantes, e o capital precisa das externalidades positivas e da cooperação social que fluem da colaboração p2p.

A minha proposta é de que as comunidades de pares produtores devem criar seus próprios empreendimentos sociais com "missão orientada", de forma que a mais-valia possa permanecer com os criadores de valor, isto é, com os plebeus ('commoners') em si -- mas isso dificilmente aconteceria agora. Em vez disso o que vemos é uma adaptação mútua entre o capital netárquico (netarchical capital) de um lado, e as comunidades de pares produtores do outro. Onde o horizontal encontra o vertical, surgem muitas adaptações diagonais híbridas.

A questão crucial se torna então: "como é que vamos adaptar", quando é que a adaptação pode se tornar cooptação, se não pior, exploração pura. Pode-se dizer que esta é a luta de classes do século 21, entre as duas classes emergentes, que na minha opinião, serão os principais fatores na transição para um novo tipo de sociedade. Para os pares produtores a questão torna-se, se não podemos criar nossas próprias instituições totalmente autônomas, então como podemos adaptar, mantendo o máximo de autonomia e sustentabilidade como um bem comum, e como uma comunidade.

[SC]: Por que o paradigma p2p foi incapaz de criar alternativas bem sucedidas em algumas áreas? Por exemplo, no caso das redes sociais, iniciativas como o diáspora têm sido marginais até agora, e quedamos contando com entidades comerciais, por vezes corporações multinacionais, para empoderar a comunidade de pares a realizar grandes coisas (por exemplo, os movimentos no oriente médio). Existe um problema aqui? Quero dizer, em terceiro lugar: as entidades comerciais operando enormes comunidades de pares que criam valor, não lhes permite realizar lucros enormes?

[MB]: Na produção por pares orientada ao commons, onde as pessoas se agregam em torno de um objeto comum (o que requer uma profunda cooperação), eles costumam ter as suas próprias infra-estruturas de colaboração, contemplando uma ecologia que integra uma comunidade, uma associação com missão-orientada (for-benefit) para a gestão da infra-estrutura, e empresas orientadas ao lucro que operam diretamente no mercado; na economia de partilha, onde os indivíduos simplesmente compartilham suas próprias expressões, ser hospedado em plataformas de terceiros é a norma.

É claro que empresas com fins lucrativos têm prioridades diferentes, e desejam capturar o valor gerado para que este possa ser vendido no mercado. Esta é, na verdade, a luta de classes da era p2p, a luta entre comunidades e corporações em torno de questões diversas, em parte por causa de diferentes interesses. Assim, esta tensão é certamente um problema, mas como o exemplo colocado por você indica, não se trata de um obstáculo crucial. Mesmo plataformas comercialmente controladas estão sendo usadas para promover uma grande horizontalização e auto-agregação das relações humanas, e as comunidades, incluindo grupos políticos radicais, estão utilizando-as efetivamente para se organizar.

O importante é não se concentrar apenas sobre as limitações e as intenções dos donos da plataforma, mas usar o que pudermos para reforçar a autonomia das comunidades de pares. Às vezes, isso requer uma adaptação inteligente a seja lá o que for que o status quo já está produzindo. Questões importantes: quais meios 'imperfeitos' podemos usar para nosso próprio benefício; quais infra-estruturas precisam de fato tornar-se independentes de controle, e o que precisamos exigir dos proprietários das plataformas que 'exploram' o trabalho livre sem dar nada em troca. Por exemplo, o Fórum da Cultura Livre exige uma participação de 15% na receita gerada, a fim de sustentar os seus plebeus criativos.

O fato hoje é que o capital ainda é capaz de agregar vastos recursos financeiros e materiais, o que o torna capaz de gerar coisas como o Google, o YouTube, o Facebook, etc ... plataformas que podem facilmente e rapidamente oferecer serviços, criando efeitos de rede que são muito difíceis, embora não teoricamente impossíveis, de serem emulados por arranjos p2p "puros", que podem não ter a mesma facilidade de acesso aos recursos atraídos de forma rápida e eficiente pela mecânica do capital. O problema com o diáspora é que, sem os efeitos de rede, não há nenhum "lá" lá, apenas uma vazia plataforma em potencial. Se você quiser alcançar as pessoas, você ainda precisa estar onde eles efetivamente estão, ou seja, nas plataformas mainstream.

Entretanto, ativistas p2p devem funcionar em ambas as frentes, ou seja, utilizando plataformas mainstream para espalhar suas idéias e sua cultura de forma a atingir um maior número de pessoas, e ao mesmo tempo, desenvolvendo suas próprias ecologias de mídia autônoma, que podem operar de forma independente. O importante é manter um compromisso com o longo prazo, ou seja, com a construção lenta e cuidadosa de uma infra-estrutura alternativa para a vida.


[SC]: O bem comum (commons) é o real campo de aplicação do paradigma p2p, ou podemos pensar no p2p também sendo usado como um modelo potencial para aplicações de lucro?

[MB]: O commons e o p2p são apenas aspectos diferentes do mesmo fenômeno, o commons é o objeto que a dinâmica p2p está construindo, e o p2p ocorre onde há bens comuns. Lembre-se, eu não uso o termo p2p em um sentido puramente tecnológico, mas em um sentido sociológico, como um tipo de relacionamento. Portanto, tanto o p2p como o commons, como eles criam valor abundante (digital) ou suficiente (material) para os 'commoners' (os pares), estão em condições de, ao mesmo tempo, gerar oportunidades para criação de valor agregado para o mercado. Não há nenhum domínio que esteja excluído do p2p, nenhum campo que possa afirmar que "não seria mais forte através da abertura para a dinâmica da participação e da comunidade". E não há nenhuma comunidade p2p que hoje possa dizer: "estamos a longo prazo totalmente sustentável dentro do atual sistema, sem necessidade de recursos extras provenientes do mercado".


[SC]: Poderia a adoção de moedas p2p como Bitcoin facilitar a fusão de sistemas de produção de valor p2p com esquemas comerciais / do mercado?

[MB]: Temos que ter cuidado aqui. Uma tendência identificável é a difusão atual de infra-estruturas e arranjos, ou seja, a introdução de crowdsourcing, crowdfunding, empréstimo social, moedas digitais, ferramentas que promovem uma participação mais ampla do paradigma p2p nas práticas atuais. Isso é uma coisa boa, mas não suficiente. Todas as coisas que eu mencionei acima imprimem um movimento em direção de uma infra-estrutura distribuída, mas não alteram a lógica fundamental de que eles estão fazendo. No caso do bitcoin, trata-se de uma moeda que funciona com base em escassez, sujeita às mesmas forças especulativas que operam nos metais raros, e portanto totalmente sintonizada na lógica do capital, assim como os sites de empréstimos sociais etc... O que realmente precisamos é de uma segunda onda de infra-estruturas de distribuição, que também possam incorporar novos valores éticos. Bitcoin poderia funcionar com demurrage por exemplo, ou no contexto de um crédito do commons. Empréstimos sociais poderiam ser usados para investimento de "dinheiro lento" em empreendimentos éticas ou comunidades. Sem isso, nós estamos falando da distribuição do capitalismo, e não sobre uma mudança mais profunda na lógica da nossa economia.


[SC]: Nós, mais e mais vezes, vemos soluções p2p criar atalhos onde os sistemas comerciais não funcionam ou não são suficientemente eficientes ou, simplesmente, são caro (às vezes exageradamente): como empresas à moda antiga poderiam adaptar-se ao p2p para evitar a sua desatualização, e a sua superação por alternativas baseadas em p2p?

[MB]: Não importa o quanto você é bom, não importa o quanto de capital você tem para contratar as melhores pessoas, você não pode competir com o potencial de inovação das comunidades abertas globais. É isso que impulsiona todos os negócios a se adaptarem, de uma forma ou de outra, à dinâmica p2p. Como uma empresa, você tem mais inovação, uma articulação mais profunda nas redes, estruturas de custo mais baixo, e muitas outras vantagens competitivas. Mas tudo isso vem com um preço, ou seja, a necessária adaptação às regras e normas da nova cultura em rede, e às comunidades em particular nas quais você está trabalhando. E o oposto também está acontecendo, como descrevemos acima, mais e mais comunidades orientadas para o bem comum (commons-oriented) estão criando suas próprias coligações empresariais. É claro, certo tipo de empresas, por causa de suas posições de monopólio e de seus sistemas legados, terão um período muito difícil nesta adaptação, o que cria o cenário para que novos players apareçam em condições de responder de forma mais efetiva.


[SC]: É necessário um "novo tipo de empresa" para incorporar o modelo de produção p2p, ou um novo tipo de "comunidade" para incorporar os aspectos comerciais, o lucro?

[MB]: Com certeza, o modelo corporativo é incapaz de lidar com as questões ecológicas e de sustentabilidade, porque o seu próprio DNA, a obrigação de legal de enriquecer os acionistas, o faz se esforçar para reduzir os custos de entrada, e ignorar as externalidades. Para uma empresa com fins lucrativos, o que é legal é ético, e a regulação externa pode apenas moderar tais comportamentos. Isto significa que "regulação" também deve ser interna, e para isso, precisamos de novas estruturas corporativas, um novo tipo de entidade do mercado para o qual o lucro é um meio, mas não um fim, dedicado a um "benefício", uma missão, ou ao sustento de uma determinada comunidade e / ou commons. Seguindo lasindias.net, eu uso o conceito de phyles. e a própria Fundação P2P criou como que uma cooperativa global que visa tornar o trabalho no commons do conhecimento P2P sustentável. Estas novas entidades devem se tornar o núcleo de um novo setor privado, e que são estruturalmente inerentemente sustentável.


[SC]: Há uma ligação especial entre a crise de recursos, a alta do petróleo, e os temas de sustentabilidade em geral, com o movimento p2p? Sustentabilidade seria um atributo substancial dos sistemas p2p, coletivos, descentralizados?

[MB]: Eu costumo argumentar fortemente sobre este link. Na minha opinião, empresas com fins lucrativos são inerentemente não-sustentáveis em seu DNA, porque dependem de escassez, ou seja, a abundância destrói a escassez e, portanto, abala os mercados; um exemplo de prática perniciosa em particular é a obsolescência planejada. Mas uma comunidade aberta de design, por exemplo, não funciona com base nesses incentivos perversos, e naturalmente desenvolverá projetos voltados para a sustentabilidade. Tais coletivos irão desenvolver projetos voltados para a inclusão, de forma a permitir que outros possam adicionar novos elementos ao projeto e, finalmente, também irão desenvolver formas mais distribuídas de fabricação, que não necessitem de centralização financeira e geográfica.

A E-cars por exemplo, produz projetos abertos para carros híbridos, de modo que qualquer mecânico no mundo pode fazer o download do projeto e trabalho em seu carro localmente. O 'Common Car' é projetado modularmente, com uma pele biodegradável que pode ser trocada sem a necessidade de um carro novo completo. Isto significa que os empresários, agregando-se para abrir projetos de design colaborativo, começariam a trabalhar a partir de um espaço totalmente diferente, mesmo que eles ainda utilizem a forma clássica de empresa. Evitar o compartilhamento de projetos de sustentabilidade por meio de monopólios de propriedade intelectual também é, na minha opinião, antiético, e a existência de tais patentes deveria ser pautada por uma perspectiva minimalista, jamais por uma lógica maximalista.


[SC]: Como é o seu sentimento hoje sobre as perspectivas "high road" e "low road"?

[MB]: O cenário "high road" propõe um governo esclarecido, que "promove e empodera" a produção social e a criação de valor, e permite uma transição mais suave para os modelos p2p; o cenário "low road" é aquele em que nenhuma reformas estrutural acontece, a situação global desemboca em diferentes formas de caos, e o p2p torna-se uma tática de sobrevivência e resistência para enfrentar as extremamente difíceis circunstâncias sociais, políticas e econômicas que virão. O problema hoje é que os movimentos sociais são demasiado fracos para impor reformas estruturais, apesar de que esta situação poderia mudar e está mudando enquanto nós falamos aqui, veja as mobilizações nas praças europeias. O outro aspecto importante é que o clássico ciclo econômico de 60 anos, conhecido como "onda Kondratieff", se encerra com o colapso de 2008, o que é agravado pela crise da biosfera e outros (alterações climáticas, a sexta grande extinção, o pico do petróleo), que na minha opinião configuram sinais do declínio acelerado do capitalismo. Apesar de estar confiante de que o modelo de crescimento infinito está se aproximando do fim, isso não significa, naturalmente, que o que vai substitui-lo será melhor. Trabalhar para construir uma alternativa melhor é realmente a tarefa histórica do movimento p2p. Em outras palavras, depende de nós!


[SC]: Quais são as próximos aplicações potencialmente revolucionárias do modelo P2P?

[MB]: Eu realmente não penso em termos de avanços ou revoluções tecnológicas, porque a platafroma fundamental, a rede global de inteligência coletiva viabilizada pela internet, já existe entre nós. Esta é a grande mudança, e todos os outros avanços tecnológicos serão informados por esta nova realidade social caracterizada pela horizontalização de nossa civilização. O importante agora é defender e ampliar nossos direitos de comunicação e organização, mobilizando-nos contra as tentativas concertadas para voltar o relógio. Enquanto posso afirmar que voltar no tempo é realmente uma impossibilidade, isso não significa que as tentativas de governos e grandes corporações sejam incapazes de criar grandes danos e dificuldades.

Precisamos de tecnologia p2p para viabilizar o desenvolvimento de soluções globais para as crises sistêmicas que estamos enfrentando. Retardar este processo, de fato, põe em risco o futuro da Terra e da humanidade. Estamos vivendo em um sistema bio-pático, que literalmente destrói a base da vida humana e natural; e o p2p é necessário para assegurar a transição para uma civilização biofílica, o que pode garante a continuidade do nosso habitat natural e de suas dádivas para a humanidade. A tecnologia é apenas uma ferramenta, embora muito importante, para a transformação, mas devemos evitar qualquer determinismo tecnológico, bem como as utopias equivocadas que ficam a depender do próximo grande avanço mágico da tecnologia.

terça-feira, maio 10, 2011

Em busca de um modelo de desenvolvimento aberto e distribuído em software livre para o governo


Em 2003 o Governo Federal iniciou um forte movimento de adoção do software livre como diretriz política e tecnológica. Nesse mesmo período o Ministério da Cultura passou a pautar o software livre em seus programas e projetos, com destaque ao Programa Cultura Viva, em que a Ação Cultura Digital promoveu a distribuição de Kits Multimídia com aplicações específicas -- edição digital de áudio e vídeo -- em software livre para os Pontos de Cultura.

Desde então, o MinC realizou alguns investimentos no desenvolvimento e suporte ao uso de software livre no mundo da cultura. Uma das iniciativas que merece destaque é o projeto Estúdio Livre, que através de bolsas de pesquisa para diversos profissionais, entre 2005 e 2007, gerou documentação e capacitação para a produção e distribuição de mídia criada com software livre. No entanto, dentre essas bolsas, não havia recursos suficientes para investir no desenvolvimento e aperfeiçoamento destes softwares.

Nos demais setores de governo, a demanda por aplicações típicas da administração federal potencializou o compartilhamento de plataformas comuns entre as instituições governamentais, e favoreceu o incentivo a comunidades de desenvolvimento baseadas nas áreas de TI dos órgãos parceiros, fomentando também a interação com parceiros comerciais que foram motivados a compartilhar o código. Tal dinâmica alavancou o sucesso do Portal do Software Público, que desempenha papel estratégico na disseminação do uso de aplicações livres nas diversas esferas de governo.

Entretanto, o desenvolvimento das aplicações livres específicas demandadas pelo mundo da cultura não se encaixam tão bem neste arranjo intra-governo. Penso que isto se dá pelo fato da inovação neste setor emergir da confluência entre a arte e a tecnologia, no diálogo natural entre as práticas e as linguagens que surgem em meio às novas formas de conceber, produzir e distribuir cultura. Tal configuração a meu ver determina o caráter distribuído e aberto que o apoio a este tipo específico de desenvolvimento deve incorporar.

Enquanto isso, nos pontos de cultura, o descompasso entre as demandas de uso das aplicações livres do kit multimídia, e a evolução das mesmas frente às alternativas em software proprietário, gerou o que podemos chamar de um atrativo perverso ao uso de programas piratas. Se partimos do princípio de que o uso de software livre constitui elemento estruturante da implementação dos Pontos de Cultura, torna-se evidente que para o sucesso da política é fundamental uma preocupação especial com a qualificação das ferramentas livres disponibilizadas aos contemplados.


Em 2009, no âmbito do processo do Fórum da Cultura Digital Brasileira, a necessidade de apoio ao desenvolvimento de softwares livres, especialmente aplicações para produção e distribuição de mídia, foi uma das principais demandas apontadas pela sociedade como forma de garantir a plena disseminação e uso dos softwares livres por parte de artistas e profissionais da área da cultura. Esta demanda emerge naturalmente da compreensão estratégica sobre a importância que o software adquire em um mundo mediado pelas interfaces digitais, e em minha visão configura resultado direto do exercício de apropriação tecnológica qualificada promovida pelo movimento dos pontos de cultura.

Em resposta a esta demanda o Ministério da Cultura, através da sua Coordenação de Cultura Digital, inaugurou na edição de 2010 do Forum Internacional de Software Livre (FISL) uma série de discussões junto às comunidades de desenvolvimento. O objetivo foi convocar o setor para auxiliar na formulação de um Programa de Apoio ao Desenvolvimento Aberto e Distribuído de Softwares Livres, com foco preferencial nos softwares de produção multimídia utilizados por produtores culturais e pontos de cultura.

Em paralelo, realizamos uma série de consultas junto à Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para avaliar modelos institucionais que contemplassem o apoio governamental às comunidades de desenvolvimento de software. Exploramos a possibilidade de se coordenar a evolução das aplicações e a produção de código de forma distribuída através de plataformas colaborativas abertas, que poderiam operar diretamente a relação com os desenvolvedores através de micro-pagamentos por empreitada (bounties).

Software Livre não é um projeto, grupo ou comunidade. Trata-se de um conceito para o desenvolvimento de tecnologia, o qual evoca a inovação nas dinâmicas produtivas e nos modelos de negócio. A partir da demanda do Fórum da Cultura Digital, e face à postura arrojada do ministério em fomentar a reflexão sobre os arranjos econômicos da cultura colaborativa, entendemos que cabia ao MinC o papel de alavancar a atuação do Governo para legitimar e apoiar essas novas dinâmicas.

Como resultado de toda esta reflexão, e após algumas consultas internas sobre a melhor forma de encaminhar um projeto com tal especificidade, fomos aconselhados pela Consultoria Jurídica do ministério a buscar a parceria com uma universidade. Ao final do ano de 2010, o plano foi desenhado contemplando 2 dimensões, ou eixos: (1) a prospecção de elementos que auxiliem a administração pública a encontrar mecanismos de contratação, gestão e monitoramento / avaliação de projetos de desenvolvimento desta natureza, e (2) a realização de editais que implementem os mecanismos prospectados, efetivamente fomentando o desenvolvimento e a melhoria dos softwares culturais livres. Tais editais seriam então avaliados com o objetivo de identificar as boas práticas e assim evoluir o modelo.

Foi então que em nome da Secretaria de Políticas Culturais do MinC realizei contato com a Universidade Federal do ABC, representada na pessoa do Prof. Sergio Amadeu, sondando a possibilidade do projeto tornar-se objeto de um termo de cooperação entre as instituições. Com reconhecida experiência em questões que envolvem a implementação de software livre em governos, e estando agora à frente de um departamento acadêmico voltado para a reflexão sobre os desafios que estes novos arranjos econômicos engendram, o Prof. Amadeu mostrou-se parceiro qualificado para a empreitada. Sua reputação no tema, não por acaso, encontra-se extensivamente documentada neste blog.

Devido às circunstâncias típicas dos períodos de fim de ano nos órgãos federais, e acrescido o fato de que se tratava de uma temporada de pré-transição de governo, ocorreu um atraso no encaminhamento dos trâmites de formalização da parceria. No dia 31/12/2010 foi enfim publicado no DOU o extrato do Termo de Cooperação n° 006/2010, firmado entre o MinC e a UFABC -- para alegria de todos os que trabalharam arduamente para que esta iniciativa inovadora sobrevivesse aos difíceis caminhos da burocracia estatal.

Desde então, minha tarefa tem sido explicar o contexto do projeto para os integrantes da nova gestão do MinC, demonstrando a importância da iniciativa neste momento de ampla reformulação dos arranjos criativos e econômicos no campo da cultura. Não à toa, o projeto despertou o interesse da nova Secretaria de Economia Criativa, além de ter sido bem apreciado quando apresentado em detalhe ao Secretário Executivo Vitor Ortiz e mais recentemente à Ministra Ana de Hollanda.

O problema concreto para a efetivação do Termo de Cooperação hoje se resume às limitações orçamentárias impostas aos órgãos do executivo neste ano atípico, o que demandará mais criatividade e dinamismo por parte do MinC e da UFABC para a realização das metas. Confio que a pertinência e propriedade da iniciativa tenha condições de atrair outros parceiros de governo em condições de apoiar o projeto, e neste sentido estamos já conversando com os ministérios das Comunicações, da Ciência e Tecnologia, e em breve retomaremos o contato com o MEC.


O momento é de retomada pós-transição, e na perspectiva da comunicação sobre projetos de interesse público, é fundamental termos a boa vontade de explicar exaustivamente as premissas que orientaram as políticas. Especialmente quando tratamos do digital e suas implicações para o mundo da cultura, há de se levar em conta o efeito da aceleração, da velocidade com que alguns paradigmas estão sendo impactados por acontecimentos típicos do dia-a-dia no século 21. É natural a ansiedade vivenciada por alguns setores da sociedade que se vêem ameaçados por futuros incertos, indecifráveis.

Vivemos um cenário em que o grau de compreensão sobre os diferentes aspectos das transformações trazidas pelo digital se mostra por demais heterogêneo. Neste contexto, onde o diálogo entre grupos com pouca afinidade e / ou convivência é dificultado, é sempre bom privilegiar a atenção às possíveis identidades, ao invés de exacerbarmos polêmicas em torno às naturais diferenças. Esta atitude positiva tem como fundamentos o respeito e a confiança, que constituem valores elementares para uma boa e civilizada conduta na ecologia digital.


Atualização (20/08/2011): Devido às dificuldades de efetivação do Termo de Cooperação acima mencionado, o projeto será retomado em novas bases à partir de entendimentos em curso com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).

terça-feira, fevereiro 01, 2011

#Egito: é a cultura digital, estúpido!!

@tomgara recebeu esta imagem em um e-mail de um amigo no egito

Escutava esta manhã à AlJazeera, via rádio web (ootunes no iPhone), acompanhando relatos ao vivo direto da Tahir Square no Cairo, capital do Egito, onde mais de 1 milhão de pessoas se aglomeravam para pedir a queda de Mubarak -- o ditador há 30 anos no poder. A ótima locutora destacava a singularidade desta revolução popular: o movimento não apresenta qualquer líderança em condições de representatividade. Com o vigoroso som dos manifestantes na praça ao fundo, cantando palavras de ordem contra o regime, a emocionada jornalista narrava a urgente necessidade de interlocutores que neste momento estejam em condições de representar o movimento oposicionista nos diálogos urgentes e necessários para a solução do impasse politico.

Devo dizer que estou fascinado com o desenrolar dos fatos no Egito, e grato pela oportunidade de acompanhar tudo tão "de perto". Twitter e AlJazeera são os principais canais, mas é muito interessante também olhar a cobertura da CNN, da BBC e até a da Globo, e assim observar as nuances narrativas, revelando os interesses geopolíticos em jogo. É sem dúvida um evento histórico de grandes proporções, que certamente irá causar grande impactos no ecossistema global de mídia. De onde enxergo, diria que se trata de um evento típico da era da cultura digital. Mas há controvérsias...

Na manhã da última sexta-feira (28/01), quando o mundo descobriu que o Egito havia sido 'desplugado' da rede mundial, eu acompanhava pela AlJazeera (e por tweets) os relatos das manifestações de rua no Cairo. Havia grande ênfase da cobertura sobre a juventude dos manifestantes, e de como a censura à rede naquele momento parecia acirrar os ânimos. Foi então que, no clima do norte da África, twitei: "Se o gov derruba a Internet, derrubemos o gov!!". Para minha surpresa, o que considerei uma provocação pertinente para o momento, virou Top Tweet e está sendo retuitado até hoje. Gerou conversas, como abaixo.

Foi o primeiro sinal de que havia uma polêmica em curso na rede sobre o 'real' papel e importância da Internet -- ou de suas principais marcas como Google, Facebook, Twitter, etc. -- nas revoluções egípcia e tunisina. Percebi também que eu inadvertidamente (e TopTweetadamente) havia tomado o lado dos ciber-utópicos. Obviamente, o momento é propício para a velha mídia 'requentar' oposições clássicas como a contenda Gladwell X Shirky, e parece sob medida para o lançamento do livro do Evgeny Morozov: "Net Delusion: How not to liberate the world". O autor, que vem encarnando o necessário personagem midiático do "caçador das ciber-utopias", é velho conhecido da comunidade Global Voices. Eu mesmo o encontrei no GVSummit 2008 em Budapeste, e desde então passei a acompanhar as trocas entre Morozov e o colega David Sasaki na rede. Um trecho de David me parece ilustrativo:

"Em abril de 2007, quando sua corrente sanguínea estava ainda contaminada com algumas gotas de idealismo, ele (Evgeny Morozov) escreveu um artigo que argumentava ser a internet a nova fronteira do ativismo pelos direitos humanos (que ótimo para ele que o artigo está fechado em uma área só para assinantes).

Mas então Evgeny corretamente aprendeu que você não ganha muita grana e nem muita atenção quando trabalha para o progresso social. Se você quer dinheiro e fama, é melhor reclamar sobre o que está errado do que trabalhar para torná-lo certo. (Muitos pundits da web e 'pesquisadores da internet' descobriram esta verdade.)

...uma (pequena) parte de mim sempre saúda Evgeny quando ele denuncia a birutice nas manchetes do tipo "a revolução será twitada", mas assim como vocês, penso que a melhor coisa a fazer é descobrir o que funciona, o que não funciona, e seguir em frente."

Ballot Fraud, the Blogosphere, and Fame-Seeking Intellectuals in Russia - El Oso (26/10/2009)

Não é minha intenção dar seguimento à polêmica(s). Compreendo o papel que o debate estilo FlaXFlu desempenha na mídia tradicional, mas de fato vejo-o como algo estéril e pouco esclarecedor. Gostaria de chamar a atenção para o que considero relevante. Ou seja, a singularidade histórica deste movimento popular que está à ponto de derrubar um dos regimes mais sólidos e duradouros no mundo, que inclusive conta com respaldo do 'império' -- este movimento simplesmente não apresenta nenhuma liderança constituída. Trata-se de uma articulação emergente descentralizada, que obviamente explorou aplicações específicas de difusão e interação em rede, e por isso o considero como um evento típico da cultura digital. Um artigo no NYTimes apresenta alguns dados interessantes:

"A maioria de nós tem menos de 30," disse Amr Ezz, um advogado de 27 anos que faz parte do grupo April 6 Youth Movement, que organizou um dos primeiros dias de protestos na semana passada via Facebook. Eles ficaram surpresos e maravilhados em ver que mais de 90 mil pessoas assinaram online para participar, assim encorajando outros a comparecer e trazendo dezenas de milhares de jovens para as ruas.

Surpreendidos pelo sucesso da mobilização, os líderes mais velhos, que representam os diferentes setores da oposição -- incluindo os proscritos da "Muslim Brotherhood"; o grupo liberal de protesto "Egyptian Movement for Change", conhecido por seu slogan “Enough”; e o grupo guarda-chuva organizado pelo Dr. ElBaradei (prêmio Nobel) -- se juntaram, prometendo reunir seus apoiadores para outro dia de protestos. Mas foi o mesmo punhado de jovens articuladores online quem continuou dando as cartas.

Protest's Old Guard Falls In Behind the Young - NYTimes

Revolução Facebook? Menos...

Facebook e twitter são elementos que compõem a cultura digital, assim como a infra-estrutura de conexões e servidores de dados que sustentam o que chamamos de Internet. Na perspectiva da cultura digital, não nos referimos ao fenômeno Internet como uma mídia específica, como o telefone, o rádio, e as TVs aberta e à cabo. Estas mídias, conforme bem apresentado por Tim Wu em "The Master Switch", obedeceram ao ciclo de evolução ("The Cycle") padrão, que em seu início se caracteriza pela abertura, pelo amadorismo e a competição, e depois paulatinamente tende à formação de monopólios proprietários fechados. Wu enxerga um caminho análogo para a Internet, na medida em que esta se move de suas origens, no tempo da inovação distribuída, veloz e 'selvagem', em direção ao domínio de grandes monopólios (Google, Facebook, operadoras de telecom, Apple, etc.).

A reflexão da Ecologia Digital parte do princípio de que a característica básica do protocolo que fundamenta a rede mundial de computadores é a abertura, ou melhor dizendo, a qualidade de ser aberto (openness). No desenvolvimento das políticas de cultura digital do Ministério da Cultura, sempre esteve presente a premissa de que a Internet foi concebida originalmente para a colaboração participativa, e não para atividades comerciais, e portanto, iniciativas de caráter público tem melhores condições de desenvolver o pleno potencial da rede em seu estado nativo.

É perfeitamente viável construir modelos de exploração comercial para a web aberta, e não à toa podemos dizer que trata-se do setor da economia que mais cresce no mundo. Entretanto, não é aceitável que a lógica do mercado venha a alterar os princípios básicos originais de funcionamento da rede, responsáveis pelos (fantásticos) efeitos de democratização / descentralização -- cerne de toda a transformação trazida pela Internet. Vale mencionar por exemplo a famosa neutralidade da rede, que viabiliza os processos de inovação generativa, os quais continuamente engendram novas modalidades distribuídas de agregação de valor nas pontas de rede.

Para caracterizar melhor este ecossistema da cultura digital, estamos nos referindo ao conjunto de possibilidades viabilizado pela acesso universal à Internet em banda larga, pela convergência das mídias digitais, pelo barateamento (democratização) do hardware digital, pelo software livre e os modelos de trabalho colaborativo em rede, pelo compartilhamento de conhecimento e cultura, pelo acesso qualificado ao acervos em domínio público, pelas inúmeras oportunidades de interação transnacional via rede, pelo remix digital, pelos modelos inovadores de participação cidadã na construção das políticas públicas e na governança... estamos falando, enfim, de cultura digital, da cultura de uso que se desenvolve em torno destas possibilidades, neste ecossistema. Este é o espaço de realização da convergência digital, onde uma rede de TV broadcast como a AlJazeera por exemplo, um arranjo típico da mídia tradicional, pode operar como elemento ativo da cultura digital.

Portanto, pegando o gancho do David (El Oso) Sasaki ao comentar sobre a postura do Morozov em relação ao potencial libertador da rede, "a melhor coisa a fazer é descobrir o que funciona, o que não funciona, e seguir em frente", ou em outras palavras, seguir cultivando o uso e apropriação das possibilidades da tecnologia digital e da rede. Enquanto política pública, este 'cultivo' deve ocorrer especialmente nos lugares e situações onde o acesso à estas possibilidades é mais restrito. Podemos dizer que esta perspectiva tem orientado a formulação da política de cultura digital no Brasil, desenvolvida de forma colaborativa na rede CulturaDigital.br.

PS: o título do post se refere à expressão norte-americana 'it's the economy, stupid!!', que evidencia a importância capital da economia quando se discute os fatores que influenciam a política. Quando Obama disputava as prévias do partido democrata norte-americano com Hillary Clinton em 2008, um op-ed no NYTimes sob o título 'it's the network, stupid!!' apresentava alguns fatos novos que poderiam alterar o cenário. Creio que estamos neste momento testemunhando acontecimentos marcantes, extremamente relevantes para a reconfiguração dos padrões de análise da conjuntura social, política e econômica. Ou seja, temos todos muito o que aprender...

quinta-feira, dezembro 02, 2010

O governo como plataforma: dados e acervos abertos

Notas para uma política pública

Na sociedade em rede, os dados produzidos pelos cidadãos, ou em seu nome, são a força motriz da economia e da nação -- o governo tem a responsabilidade de tratar esta informação como precioso recurso nacional. Os cidadãos se conectam entre si pela rede hoje como nunca antes, e estão desenvolvendo as habilidades e o entusiasmo para resolver os problemas que os afetam localmente, assim como nacionalmente. No século 21, informações e serviços públicos podem estar disponíveis aos cidadãos onde e quando eles precisam. Mais do que nunca, os cidadãos estão desenvolvendo o poder de desencadear a inovação, que resultará em uma melhor abordagem para a governança. Neste modelo, o governo atua como organizador e facilitador, e não como o motor inicial da ação cívica.

Entendemos que a maneira correta de encaminhar uma estratégia moderna para a questão das aplicações e serviços públicos é através de uma plataforma aberta baseada no modelo 'open data', que promova a inovação dentro e fora do governo. O desafio é desenvolver um sistema em que todos os resultados e possibilidades não sejam especificados de antemão, mas que evoluam através de interações entre o governo e seus cidadãos, da mesma forma em que os prestadores de serviços na web promovem a participação ativa de sua comunidade de usuários.

O modelo de dados abertos e estruturados é a referência no desenvolvimento do projeto Data.gov, iniciativa do gênero desenvolvida pelo governo dos EUA. O projeto contempla um conjunto de requisitos que permite estabelecer uma rede de infra-estrutura de serviços web para disponibilizar conjuntos de dados como fluxos de XML (modelo open data). A idéia não é construir todos os sites e aplicativos que irão processar estes dados, e sim oferecer interfaces de programação para todos os interessados, permitindo que desenvolvedores independentes possam inventar novos usos para os dados públicos.

Dados abertos, acervos abertos

Governos produzem e guardam quantidades impressionantes de dados. Estamos falando do registro de toda a pesquisa que se realiza nos mais diversos órgãos e universidades públicas, assim como todos os acervos documentais e culturais, incluíndo o patrimônio histórico, museus e bibliotecas, acervos audiovisuais, do cinema, TVs públicas, todo o conteúdo da TV Escola e do Domínio Público. Todos estes dados em tese são abertos para uso público, mas o fato é que estes acervos, os que se encontram já digitalizados e disponibilizados, estão em formatos pouco amigáveis ou não estruturados para o acesso qualificado em aplicações inovadoras.

Ao refletir sobre esta abordagem no campo específico dos conteúdos digitais científicos, educacionais e culturais de caráter público, podemos afirmar que uma iniciativa no sentido de implementar padrões e processos de digitalização e disponibilização de acervos, tratando de coordenar padrões de metadados para a catalogação adequada, poderia alavancar um novo cenário para a circulação de conteúdos em língua portuguesa no meio digital. Uma tal modelo de plataforma, por assim dizer, propiciaria também uma melhor regulamentação de possíveis utilizações de conteúdos públicos por parte da iniciativa privada, e poderia estabelecer condições para novos arranjos econômicos com base em acesso remunerado aos conteúdos de sua propriedade dentro de um ecossistema organizado de acesso e distribuição.

Para alcançar este objetivo, é necessário organizar o setor dotando-o de um espaço de interlocução, regulação e organização capazes de facilitar os processos de digitalização em instituições públicas ou privadas, assim como determinar, dentro das condições e peculiaridades nacionais, quais os processos e padrões que melhor atendem às premissas de preservação e acesso aos acervos informacionais brasileiros.

segunda-feira, novembro 15, 2010

A Cultura Digital Brasileira na Conferência sobre o Commons em Berlim


David Bollier, especialista e autor de Viral Spiral, faz a palestra de abertura do evento

Através de alguns encontros oportunos em viagens ao exterior, onde temos a chance de divulgar o que está acontecendo no Brasil no âmbito do que chamamos Cultura Digital, fui convidado a participar na primeira Conferência Internacional sobre Commons (“I International Commons Conference“).

Realizada recentemente pela Fundação Heinrich Boll em Berlim, a Conferência reuniu por volta de 200 pesquisadores, ativistas e especialistas, e teve como objetivo principal evidenciar os pontos em comum entre movimentos aparentemente distintos como por exemplo, o software livre, e as organizações locais para governança de recursos fundamentais como a água, ou ainda as iniciativas para criação de bancos de sementes como alternativa ao uso de sementes genéticamente modificadas protegidas por copyright.

O plano era fomentar uma convergência entre os estudiosos dos diversos ‘commons’, e os ativistas que estão desenvolvendo os projetos na prática, criando assim as condições para o lançamento de uma “plataforma política baseada no ‘commons’”.

‘Commons’?

A Wikipedia traduz the commons como ‘bens comunais‘, ou ‘comunais’. Quando pensamos em estratégias para promover esta aproximação entre os diferentes grupos que valorizam os modelos de gerenciamento sobre propriedades coletivas, vale indagar se o termo ‘commons’, no momento em que é portado para outras línguas e culturas, se presta a esclarecer / comunicar os conceitos e valores embutidos.

O que pude perceber em Berlim é que existem diferenças consideráveis entre os que se reúnem para tratar deste tão específico tema. Os chamados ‘commons tradicionais’, que se interessam pelas modelos clássicos de governança sobre propriedade coletiva, e os vibrantes ‘commons digitais’, a turma que se converteu ao compartilhamento e ao trabalho coletivo em rede, constituem por si duas tribos já bem distintas.

Fato é que os ‘commons tradicionais’ apresentam interessante acúmulo no tema, focando nos modelos históricos de governança para gerenciar recursos compartilhados. O elemento confiança é destacado como fundamental para que os pares respeitem as normas estabelecidas, e a propriedade comum configura um fator de agregação social que irá facilitar a cooperação em outras áreas.

Entretanto, é preciso admitir que os ‘commons tradicionais’ foram sistemáticamente atacados durante todo o século passado pelas estratégias hegemônicas do mercado, que se valeram de parábolas como a Tragédia dos Comuns (‘Tragedy of the Commons‘) para naturalizar uma prevalência da propriedade privada como referência de eficácia gerencial. O prêmio nobel de economia para Elinor Ostrom em 2009, por seus estudos em governança econômica do commons, promete inaugurar uma nova fase para o conceito.

‘Commons Digitais’ na ofensiva

Michel Bawuens da P2P Foundation, em sua palestra na ICC em Berlim, afirmou que os ‘commons digitais’, por sua vez, estão na ofensiva. O sucesso do modelo de produção em software livre, que se tornou infra-estrutura fundamental da rede mundial de computadores, e também das corporações que apresentam melhor desempenho nos novos modelos de negócio da web, demonstra de maneira definitiva a eficácia destas novas formas de produção.

Neste cenário, os ‘commons digitais’ se mostram prontos para apresentar soluções inovadoras às questões colocadas pelas crises política e econômica globais. As licenças Creative Commons para expressão individual e compartilhamento, e a GPL (General Public License) como geradora de “commons”, são soluções bem acabadas e inovadoras para um novo momento econômico.

Com a queda nos custos de coordenação / comunicação, a hierarquia (instituições) deixa de ser necessária à coordenação de iniciativas coletivas. Dessa forma, dinâmicas locais podem se tornar globais. Quanto ao elemento confiança, fundamental para o funcionamento das dinâmicas commons, vem claramente se reconfigurando e mudando de foco especialmente entre os mais jovens: “confio mais em pessoas como eu, com quem eu posso me relacionar diretamente, do que em instituições opacas”.

Cultura Digital Brasileira

No Brasil, o uso intensivo das possibilidades de interatividade da Internet e dos ambientes de redes sociais tem gerado um público que se apropria muito rápido da cultura digital. Sempre gosto de destacar o fato de que no Brasil experimentamos o fenômento da rede social ubíqua (Orkut – 2005/6) bem antes do resto do mundo (Facebook – 2009/10).

Por outro lado, o Programa Cultura Viva do MinC, com a implementação dos Pontos de Cultura, tornou o Brasil o primeiro Estado a promover como política pública o exercício de uso efetivo e integrado das duas principais soluções inovadoras dos ‘commons digitais’: o software livre e as licenças alternativas como o Creative Commons.

A vitalidade dinâmica que emergiu do exercício digital dos Pontos de Cultura impactou o MinC de maneira irreversível, e em 2009 foi criada a Coordenação de Cultura Digital, que deu origem à rede social CulturaDigital.BR — plataforma para a construção colaborativa de políticas públicas e ambiente permanente do processo do Fórum da Cultura Digital Brasileira. Um novo jeito de fazer política pública.

A rede CulturaDigital.BR, além de servir de plataforma para publicação de conteúdos das iniciativas fomentadas, proveu tecnologia e hospedou processos de colaboração interativa como a elaboração do Marco Civil da Internet e a consulta pública sobre a revisão da Lei de Direito Autoral. A rede é também avatar político no Fórum Brasil Conectado, instância consultiva do Programa Nacional de Banda Larga. O projeto de uma rede social aberta lançada por um governo, único no mundo, ganhou menção honrosa no Prix Ars Electronica 2010.

Ao tentar explicar em Berlim, como e porque estas inovações estão acontecendo no Brasil, e mais especificamente no Ministério da Cultura, tive que fazer referência a Gilberto Gil e sua postura como ministro-hacker. Mencionei também a presença de elementos da Tropicália na narrativa que propõe o exercício da cultura digital. Enfim, disponibilizo o vídeo da apresentação na qual o desafio era falar de tudo isso em 5 minutos:


Nesta apresentação, a intenção foi mostrar como as iniciativas de aproximação de arte e tecnologia do MinC foram exitosas em promover a rápida apropriação de novos modos de fazer amparados no digital. Além disso, tentei demonstrar como estes novos modos de fazer impulsionaram a inovação na condução da política pública, agora realizada através de plataformas tecnológicas, ambientes digitais interativos.

Minha manifestação ao final do evento foi de que, para se criar uma plataforma política baseada no commons, seria importante criar o ambiente e a cultura de interatividade capaz de promover a desejada convergência. Trata-se da cultura de se utilizar efetivamente estas ferramentas. Me parece que é neste aspecto que os ‘commons digitais’ podem se colocar a serviço das outras modalidades commons, e do resto da sociedade. Este é um dos traços marcantes da inovação que a cultura digital brasileira representa no cenário global.

Veja também:

quinta-feira, outubro 14, 2010

Silke Helfrich apresenta a Conferência Interacional sobre o Commons: Em busca de um movimento mais amplo

À medida em que a população mundial passou a ter maior acesso à Internet, um número crescente de movimentos caracterizados pela lógica livre e aberta (free and open) emergiram – incluindo os movimentos de software livre e open source, cultura livre (free culture) , creative commons, o livre acesso (open access) e dados abertos (open data).

Na medida em que estes movimentos se tornaram mais amplamente conhecidos – e bem sucedidos – um contingente maior de interessados se dedicaram ao etendimento de seu significado mais amplo, e ao estabelecimento de elementos comuns entre as diferentes iniciativas. Hoje, muitos observadores consideram que tais movimentos compartilham objetivos e aspirações muito semelhantes, e que em seu conjunto representam um renascimento da noção de “commons”.

Há também um consenso emergente de que, ao contrário do que foi inicialmente assumido, este renascimento não se limita à Internet e aos fenômenos digitais, mas sua influência pode também ser observada na forma em que alguns produtos físicos são fabricados (por exemplo, o movimento do hardware open source) e nos modelos inovadores emergentes para o gerenciamento do mundo natural.

Por exemplo, alguns integrantes de movimentos que se auto denominam “commoners” (‘comuns’) afirma que, quando os agricultores de uma localidade se mobilizam para a criação de bancos de sementes, a fim de preservar a diversidade vegetal regional, e para evitar que grandes empresas de biotecnologia possam forçar o uso de sementes de culturas geneticamente modificadas protegidas por patente, os seus objetivos são essencialmente os mesmos que os dos desenvolvedores de software livre, quando stes lançam seus softwares sob a Licença Pública Geral (GPL). Ambos estão tentando evitar que bens que hoje se encontram na esfera dos bens comuns possam ser privatizados – geralmente por empresas multinacionais que na sua busca incansável de lucros consideram justificável a apropriação, para seus próprios fins, de recursos que por direito pertencem a todos.

Uma vez compreendido neste contexto mais amplo, os novos ‘comuns’ afirmam, torna-se evidente que os movimentos livres e abertos têm potencial para catalisar radicais mudanças sociais, culturais e políticas, mudanças que em função das falhas agora evidentes do capitalismo de Estado (demonstrado, por exemplo, pela crise financeira global) são urgentemente necessárias.

Um movimento mais amplo

A fim de facilitar esta mudança, no entanto, argumentam os novos ‘comuns’ que o conjunto dos movimentos livres e abertos devem ser considerados como componentes do movimento ‘commons’ maior. Além disso, é necessário abranger e articular com os outros grandes grupos políticos e da sociedade civil que têm se mobilizado para desafiar o domínio do que poderia ser vagamente chamado de ‘acordo pós-Guerra Fria’ – incluindo o ambientalismo, a política verde, e as muitas organizações e iniciativas que tentam abordar tanto as questões do mundo em desenvolvimento quanto as alterações climáticas.

Mas para criar esse movimento maior, diz a ativista Silke Helfrich, será necessário primeiramente convencer os defensores destes diferentes movimentos de que todos compartilham objetivos comuns. Como hoje se encontram fragmentados, seus objetivos comuns não são imediatamente óbvios, e por isso serão necessárias iniciativas específicas para tornar a identidade mais transparente. Este objetivo é importante, sublinha Helfrich, uma vez que somente através da cooperação estes diferentes movimentos podem ter a esperança de se tornarem politicamente eficazes.

É com este objetivo que Helfrich está organizando uma Conferência Internacional sobre o Commons, que reunirá mais de 170 praticantes e observadores do cenário ‘commons’, provenientes de 34 países diferentes. A ser realizada no início de novembro próximo, a conferência será organizada pela Fundação Heinrich Böll em Berlim.

O objetivo da conferência, diz Helfrich, é criar a centelha de “um avanço significativo no debate político internacional sobre o ‘commons’, e uma convergência entre os estudiosos dos diversos ‘commons’ e os ativistas desenvolvendo projetos na prática.” Helfrich espera que este evento conduzirá a um acordo sobre uma “plataforma política baseada no ‘commons’”.

Qual o objetivo último? Nada menos, ao que parece, do que a elaboração de uma nova ordem social e política. Ou seja, um mundo “além do mercado e do Estado” – onde as comunidades são capazes de retomar de volta o controle de suas vidas, das mãos de governos distantes e sem rosto, e das corporações desprovidas de compromisso social.

Como Helfrich coloca, “os ideais essenciais do capitalismo de Estado – o poder de coerção top-down do governo e a chamada ‘mão invisível’ do mercado – têm de ser substituídos pelos princípios de co-governança e de co-produção auto-organizada dos bens comuns por pessoas distribuídas em localidades ao redor do mundo.”

Boa qualificação

Silke Helfrich está bem qualificada para organizar uma tal conferência. Ela já realizou três conferências sobre o ‘commons’, e tem um profundo entendimento sobre política de desenvolvimento. Entre 1999 e 2007, foi responsável pelo escritório regional da Fundação Heinrich Böll para a América Central, México e Caribe – onde desenvolveu estudos sobre a globalização, questões de gênero e direitos humanos.

Desde seu retorno à Alemanha, em 2007, Silke desenvolveu uma reputação internacional de defesa do ‘commons’ em língua alemã através do CommonsBlog, e também coordena um forum de debates políticos interdisciplinares chamado “Time for the Commons” na Fundação Heinrich Böll.

Nos últimos anos Silke Helfrich publicou vários artigos e relatórios sobre os bens comuns para as organizações da sociedade civil e, recentemente, editou uma antologia de ensaios sobre o ‘commons’ chamada To Whom Does the World Belong? The Rediscovery of the Commons. (A quem pertence o mundo? A redescoberta do Commons) .

Silke Helfrich apresenta o contexto e os propósitos da Conferência Internacional sobre o Commons em mais detalhes na entrevista abaixo, concedida a Richard Poynder*.

Por que você se interessou pelo tema do commons?

SH: Eu nasci na Alemanha Oriental, e quando o muro caiu em 1989 eu tinha 22 anos e tinha acabado de terminar meus estudos. Então eu vivi por mais de oito anos em El Salvador e no México, sendo que ambos são países extremamente polarizados no que diz respeito à distribuição da riqueza.

Então eu experimentei dois tipos muito diferentes de sociedade: uma em que o Estado é o árbitro das condições sociais, ea maneira pela qual os cidadãos possam participar na sua sociedade e, depois de 1989, no qual o acesso ao dinheiro determina a capacidade de participar na sociedade.

Também tem sido sempre a minha convicção de que a democracia deve envolver muito mais do que simplesmente a realização de eleições livres para, em seguida, delegar toda a responsabilidade aos políticos profissionais. Precisamos democratizar radicalmente a esfera social, política e econômica – e precisamos de um novo marco institucional para o fazer que está hoje além do raio de ação tanto do mercado quanto do Estado. Isso, na minha opinião, é precisamente o que o conceito de ‘commons’ representa hoje.

Você pode expandir a sua definição de ‘commons’, e o potencial do conceito?

SH: O ‘commons’ não é uma coisa ou um recurso. Não é só a terra ou a água, uma floresta ou a atmosfera. Para mim, o ‘commons’ é antes de tudo constante inovação social. Implica em um processo de decisão auto-determinado — dentro de uma grande variedade de contextos, regras e definições legais — que permite a todos nós usar e reproduzir nossos recursos coletivos.

A abordagem ‘commons’ pressupõe que a forma correta de uso da água, das florestas, do conhecimento, do código, das sementes, das informações em geral e muito mais, é realizada ao se garantir que a minha utilização desses recursos não prejudique o uso que outros farão dos mesmos, ou coloque o risco de esgotamento destes recursos. A abordagem implica no uso justo de tudo o que não pertence a uma única pessoa.

Estamos falando do respeito ao princípio de correspondência “uma pessoa – uma parte”, especialmente quando nos referimos os bens comuns globais. Para conseguir isso, precisamos construir a confiança e fortalecer as relações sociais dentro das comunidades.

Nossa premissa é de que não somos simplesmente “homo economicus”, perseguindo apenas os nossos próprios interesses egoístas. A crença central subjacente ao movimento ‘Commons’ é: eu preciso dos outros e os outros precisam de mim.

Não me parece que existam outras alternativas para a crise que vivemos hoje.

CONVERGÊNCIA

RP: Não seria correto dizer que o commons engloba componentes de uma série de movimentos diferentes que têm surgido nos últimos anos, incluindo software livre e o open source ( FOSS ), Creative Commons , a política Verde , e todas as iniciativas voltadas para ajudar os países em desenvolvimento?

CS: Isso mesmo.

RP: Tem sido um processo natural de convergência?

SH: A partir da perspectiva do ‘commons’, trata-se de uma convergência natural, mas não é imediatamente óbvia a grande semelhança que os diferentes movimentos e suas preocupações básicas apresentam.

RP: O que você quer dizer com isso?

SH: Deixe-me dar um exemplo: Quando começamos a trabalhar com o conceito de ‘commons’ na América Latina há cerca de seis anos atrás, estávamos trabalhando principalmente com os movimentos sociais e ecológicos, que eram críticos do impacto causado pela globalização e pelo paradigma do livre comércio. Foi então que um colega sugeriu que deveríamos convidar pessoas do movimento de software livre para participar de nossas discussões.

Enquanto fazíamos o convite, nosso primeiro pensamento foi: O que o software proprietário apresenta em comum com os organismos geneticamente modificados (OGM)? Ou, para colocar de outra maneira, o que defende o movimento do software livre, e o que este movimento poderia eventualmente ter em comum com organizações que lutam por manter regiões livres de OGMs ? Da mesma forma, o que poderia ter em comum com a agricultura apoiada pelas comunidades locais (CSA), e com movimentos dedicada a defender o acesso à água e o controle social sobre os seus recursos biológicos?

Mas rapidamente percebemos que todos eles estão fazendo a mesma coisa: defender os bens comuns! Assim, desde então, tornaram-se comprometidos em promover a “convergência dos movimentos”.

RP: Para aqueles que têm acompanhado o desenvolvimento da Internet grande parte do debate sobre o commons surgiu a partir da maneira como as pessoas – especialmente as grandes empresas multinacionais – têm procurado fazer valer os direitos de propriedade intelectual no ambiente digital. Em paralelo, houve um grande debate sobre o impacto das patentes no mundo em desenvolvimento – as patentes sobre drogas que salvam vidas, por exemplo, e as patentes sobre produção de alimentos. Mas, visto de uma perspectiva histórica, esses debates estão longe de serem novos – eles têm se repetido ao longo da história, e o conceito de ‘commons’ remonta ao perído anterior aos famigerados ‘enclosures‘ que tiveram lugar na Inglaterra dos séculos 15 e 16.

CS: Isso mesmo. Então, de certa forma estamos a falar sobre o renascimento das comunidades.

E a razão por que os desenvolvedores de software livre estão engajados na mesma luta de outros setores, como por exemplo os pequenos agricultores, é simples: quando as pessoas defendem o uso livre de código digital, como o movimento do software livre faz, eles estão defendendo nosso direito de controlar as nossas ferramentas de comunicação . (Que é essencial quando você está falando sobre a democracia).

E quando as pessoas organizam bancos de sementes locais para preservar e compartilhar a enorme variedade de sementes na região, eles também estão simplesmente defendendo o seu direito a usar e reproduzir o ‘commons’.

Ao fazer isso, eu diria, eles estão fazendo uso de uma fonte de recursos riquíssima – porque um elemento fundamental do ‘commons’ é a abundância.

RP: Hoje em dia, geralmente são levados a pensar o mundo natural em termos de escassez e não de abundância.

CS: Bem, mesmo os recursos naturais não são escassos em si mesmos. Eles são finitos, mas isso não é a mesma coisa que escasso. O ponto é que se não formos capazes de utilizar os recursos naturais coletivos (os nossos recursos comuns) de forma sustentável, na sequência, eles se tornarão escassos. Nós os tornaremos escassos!

O bem comum (‘commons’), insisto, é acima de tudo uma fonte de recursos rica e diversificada que tem sido desenvolvida coletivamente. O importante é a comunidade, ou o controle da população sobre esta de recursos, ao invés de um controle emanado de uma hierarquia top-down. É neste modelo que reside o nosso futuro!

Foi este precisamente o significado do Prêmio Nobel de Economia concedido a Elinor Ostrom, em 2009. [Sobre a atribuição do prémio, a Academia Real Sueca de Ciências, comentou: "Elinor Ostrom desafiou a sabedoria convencional de que a propriedade comum é mal administrada e deve ser regulada por autoridades centrais ou privatizadas".

Da mesma forma, o Right Livelihood Award [o chamado Nobel Alternativo] também busca destacar esta nova visão sobre a economia e a sociedade.

EVIDENCIAR A SEMELHANÇA

RP: Ok, então nós estamos dizendo que vários movimentos diferentes surgiram com objetivos semelhantes, mas as semelhanças não são imediatamente óbvias?

SH: Correto. Por isso é importante evidenciar esta semelhança. O movimento global dos ‘commoners’, hoje, apresenta um bom crescimento e é constituído por grande diversidade, mas segue atuando de forma fragmentada.

Por exemplo, podemos observar uma série de movimentos transnacionais florescentes baseado no conceito de ‘commons’ (ex.: o software livre, a Wikipedia, o livre acesso a publicações acadêmicas, etc) – os quais em geral têm origem na dimensão cultural e digital, e todos eles são baseados na colaboração e no compartilhamento comunitário.

Entretanto, muitos outros projetos comuns são modestos em tamanho, de base local, e com foco nos recursos naturais. Existem milhares deles, e eles fornecem soluções que confirmam a afirmação originária dos grupos ETC de Pat Mooney: “a solução vem das pontas” [“the solution comes from the edges”].

Agora, esses diferentes grupos mal conhecem uns aos outros, mas o que todos eles apresentam em comum é que eles estão lutando para tomar o controle de suas próprias vidas.

Juntos todos esses movimentos são realmente parte de um grande movimento cívico que está prestes a descobrir sua própria identidade, assim como o movimento ambientalista o fez cerca de 30 ou 40 anos atrás. A cooperação é a melhor maneira de fazê-las crescer e tornar-se politicamente relevantes. Assim, o objetivo deve ser convencer os vários ativistas destes movimentos que todos têm muito a ganhar com o trabalho em conjunto, articulado, colaborativo.

RP: Você concorda que a Internet tem desempenhado um papel importante no surgimento destes movimentos?

SH: Concordo. A Internet tem sido fundamental no desenvolvimento de projetos globais comuns, como o software livre e a Wikipedia, e isso facilita muito o compartilhamento de idéias – que é fundamental para tornar qualquer movimento politicamente eficaz.

Assim, a Internet permite-nos cooperar além das fronteiras tradicionais, e nos permite tomar um dos recursos mais produtivos do nosso tempo – “a gestão do conhecimento e da informação” – em nossas próprias mãos.

Olhe para as campanhas da AVAAZ, por exemplo. O número de pessoas que eles são capazes de conectar e mobilizar é incrível. [Em três anos, a Avaaz cresceu para 5.500.000 membros distribuídos em todos os países, tornando-se o maior movimento web global da história].

Um problema, porém, é que muitas comunidades que são fortemente dependentes de tecnologias baseadas na Web não estão realmente em sintonia com o fato de que, quanto mais acesso temos a esses tipos de tecnologias, mais tendemos a abusar na utilização de nossa fonte comum de recursos naturais. Então eu acho que nós precisamos compreender que a “abertura” ['openness'] no mundo digital e a “sustentabilidade” no mundo natural devem ser tratadas em conjunto.

RP: Você pode desenvolver mais esta afirmação?

CS: Nós precisamos mais do que apenas o software livre e o hardware livre. Precisamos de software livre e hardware livre, projetado para nos tornar independentes da necessidade de adquirir um fluxo constante de aparelhos cada vez mais devorador de recursos.

Então, ao invés de sair a cada três anos para comprar um laptop novo repleto de software que requer o pagamento de taxas de licença para grandes corporações, que passam a ter controle sobre a nossa comunicação, devemos ter em vista possuir apenas um computador open-hardware / modular / reciclável que execute aplicações baseadas na comunidade de software livre e que possa durar toda uma vida.

Este é um grande desafio, e é um dos muitos desafios que vamos debater na Conferência Internacional sobre Commons. Uma das questões-chave aqui é esta: a idéia de abertura é realmente compatível com os limites de nossa fonte comum de recursos (naturais)?

OBJETIVO GERAL

RP: Qual é o objetivo geral da Conferência Internacional Commons?

SH: Para colocá-lo modestamente (sorriso), o objetivo é conseguir um avanço no debate político internacional sobre o ‘commons’, e uma convergência dos pesquisadores que estão estudando o commons e os ativistas que desenvolvem as ações no campo.

Acreditamos que a conferência vai promover o planejamento e o desenvolvimento de organizações e políticas baseadas no ‘commons’, bem como fomentar sua capacidade de articulação em rede. E esperamos que até o final da conferência um conjunto de princípios e metas de longo prazo tenha emergido.

Todo o esforço, [ou devo dizer aventura? (sorriso)] certamente irá contribuir para a formação do que o meu colega Michel Bauwens – co-organizador da conferência – chama de “A Grande Coalizão dos Comuns“.

RP: Eu notei que não há nenhum site dedicado, ou publicidade prévia para a conferência. E a participação ocorre apenas por convite. Assim é porque ainda não existe ainda um consenso totalmente sobre o commons e seu potencial?

CS: Não, nós temos uma explicação muito melhor: Não houve necessidade de publicidade prévia para a conferência. Pelo contrário, como eu freqüentemente me vejo tendo que explicar às pessoas, a resposta ao nosso primeiro “chamada para reservar a data” para a conferência foi tão esmagadoramente positiva que rapidamente percebemos que o evento estaria totalmente lotado, sem qualquer publicidade. E, na verdade estamos agora mais do que lotados.

A participação presencial na conferência é apenas por convite porque nós projetamos o programa de conferências para aqueles que já estão muito familiarizados com o tema, seja através da análise do ‘commons’, ou através da produção de ‘commons’. Dessa forma, todos os nossos participantes são especialistas. Na verdade cada um deles estaria qualificado para lidar com uma palestra para a conferência.

Em outras palavras, o que nós projetamos é uma conferência de rede para os ‘commoners’ de todo o mundo – e mais de 170 pessoas de 34 países se inscreveram. Trata-se de uma grande realização, que só tem sido limitado pela disponibilidade de espaço e de recursos.

Espero, contudo, que teremos um verdadeiro Fórum Mundial de Commons dentro de um ano ou dois (sorriso).

JANELA DE OPORTUNIDADE

RP: Você acha que a atual crise financeira mundial abriu uma janela de oportunidade para os ‘commoners’, como eles se referem a si mesmos?

SH: Eu acho que sim. A crise atual (que, aliás, não é apenas uma crise financeira, e sim um conjunto de múltiplas crises) graficamente demonstra que não podemos deixar as questões políticas somente nas mãos dos políticos, nem os problemas relacionados com dinheiro somente nas mãos dos banqueiros, ou as questões relativas os nossos bens comuns somente para o mercado ou o Estado. É tudo nosso!

A crise também mostrou claramente que o jogo acabou. O que é necessário agora não são simplesmente algumas regras novas que permitam uma nova rodada do mesmo velho jogo, mas um cenário totalmente novo, que estabeleça uma nova relação entre o ‘commons’, o Estado e o mercado.

RP: O que seria essa nova relação? O ‘commons’ (bem comum) entra em competição com o Estado e o mercado, ou você o vê trabalhando em articulação com estes dois atores fundamentais do poder?

CS: Para mim a frase “um bem comum para além do mercado e do Estado” não significa necessariamente um cenário sem mercado e sem Estado: o ‘Commons’ concebidos como um sistema complexo de recursos, comunidades e regras demanda estruturas de governança muito diferentes das que conhecemos hoje. Na verdade, algumas destas serão tão complexas que demandarão uma nova estrutura institucional de governo – o que se poderia chamar de um Estado parceiro.

Uma coisa, porém, é fundamental: as pessoas que dependem destes bens comuns para a sua subsistência e bem-estar tem que ter seus interesses representados majoritariamente em todas as decisões tomadas sobre os bens comuns.

Claramente, corporações, empresas e cooperativas sempre atuaram sobre esta fonte de recursos, o ‘commons’. E para tudo o que eles produzem, eles sempre terão os nosso recursos comuns como matéria-prima. Portanto, a pergunta que precisamos fazer é: o que esses atores retornam para o Commons? Não podemos permitir que apenas retirem recursos do ‘commons’. O princípio básico deveria ser: Quem utiliza recursos do ‘commons’, deve também acrescentar ao ‘commons’.

Em outras palavras, esses agentes externos não podem ser autorizados a fazer o que quiserem com recursos coletivos. Direitos de propriedade privada exclusivos não podem existir na dimensão do ‘commons’ – conforme descrito no Manifesto Commons publicado no site da Fundação Heinrich Böll.

RP: Não seria correto dizer que o Commons não é apenas um novo movimento político e social, mas uma nova estrutura intelectual para compreender o mundo e, talvez, um catalisador para uma nova ordem social pós-industrial?

CS: Nós não estamos necessariamente a falar de uma ordem pós-industrial, mas é minha convicção de que o paradigma do ‘commons’ tem de ser baseado na visão de um ordem pós-combustível fóssil.

Tampouco estamos tratando de uma ordem nova – como já mencionamos anteriormente. Eu diria que trata-se de um antigo modelo conceitual, o qual tem de ser constantemente re-apropriado de forma emergente, e “modernizado”.

Mas sim, trata-se de um quadro conceitual para a compreensão do mundo, que abre a nossa mente para a identificação de soluções criativas, práticas, coletivas e institucionais para os dois problemas mais urgentes, ao mesmo tempo. Ou seja, o desafio ambiental e os problemas sociais que enfrentamos hoje.

RP: Existe uma escola de pensamento que diz que o desafio ambiental pode ser resolvido pelo mercado.

SH: Sim, mas eu não concordo. Por exemplo, não podemos simplesmente resolver a crise ecológica através do aumento do preço da energia (ou seja, a introdução de um incentivo baseado no mercado, a fim de reduzir o consumo) – porque isso não é uma solução para os pobres.

Isso nos lembra que os elementos essenciais do capitalismo de Estado – o poder de coerção do governo, e a chamada “mão invisível” do mercado – têm de dar espaço aos princípios de co-gestão e de co-produção típicos do movimento ‘commons’, auto-organizados pelas pessoas distribuídas em localidades ao redor do mundo.

LEITURA

SILKE HELFRICH – ARTIGOS, ENTREVISTAS E REPORTAGENS

(*) Richard Poynder escreve sobre tecnologia da informação, telecomunicações e de propriedade intelectual. É especializado em serviços online, sistemas eletrônicos de informação, Internet, Acesso Livre, e-Ciência e e-pesquisa; cyberinfrastructure; gerenciamento de direitos digitais, Creative Commons, Open Source Software, Software Livre, copyright, patentes e informações sobre patentes. Richard tem contribuído para uma ampla gama de especialistas, publicações nacionais e internacionais, e foi editor e co-autor de dois livros: 'Hidden Value' e 'Caught in a Web', sobre Propriedade Intelectual no Ciberespaço. Ele também contribui para programas de rádio.