Nesta quarta-feira (amanhã), a Comissão de Constituição e Justiça do Senado estará apreciando...
...um projeto de lei que obriga a identificação dos usuários da internet antes de iniciarem qualquer operação que envolva interatividade, como envio de e-mails, conversas em salas de bate-papo, criação de blogs, captura de dados (como baixar músicas, filmes, imagens), entre outros.O acesso sem identificação prévia seria punido com reclusão de dois a quatro anos. Os provedores ficariam responsáveis pela veracidade dos dados cadastrais dos usuários e seriam sujeitos à mesma pena (reclusão de dois a quatro anos) se permitissem o acesso de usuários não-cadastrados. O texto é defendido pelos bancos e criticado por ONGs (Organizações Não-Governamentais), por provedores de acesso à internet e por advogados. Os usuários teriam de fornecer nome, endereço, número de telefone, da carteira de identidade e do CPF às companhias provedoras de acesso à internet, às quais caberia a tarefa de confirmar a veracidade das informações.O acesso só seria liberado após o provedor confirmar a identidade do usuário. Para isso, precisaria de cópias dos documentos dos internautas.Ou seja, enquanto o mundo livre discute formas de facilitar a entrada na rede com o intuito de proporcionar indistintamente a todos as vantagens da livre comunicação e do acesso irrestrito à informação e serviços disponíveis na Internet, o congresso brasileiro está avaliando a possibilidade de estabelecer um tipo de controle que só encontra paralelo na China. Conhecido como 'Real Name blog system', a iniciativa do governo chinês (ainda não implementada) está direcionada apenas para os blogs, e mesmo assim vem encontrando grande resistência (!):
Projeto quer controlar acesso à internet - ELVIRA LOBATO - da Folha de S.Paulo, no Rio
'Em sua edição da semana passada, o 21st Century Business Herald da China reportou que representantes da indústria da tecnologia da informação teriam formado um 'grupo de pesquisa sobre Weblogs' para explorar a possibilidade de criação de um sistema de identificação para a população blogueira no país, requerendo todos os usuários a registrarem-se com seus nomes verdadeiros. A notícia causou revolta na mídia comercial e entre os usuários da Internet, impulsionando o debate sobre privacidade, anonimidade e liberdade de expressão.'Os blogueiros chineses estiveram recentemente reunidos no CnBloggercon e o 'real name system', como não poderia ser diferente, esteve na pauta. Me parece bem ilustrativa a defesa que o blogueiro Lian Yue apresenta para a manutenção da anonimidade na rede:
Chinese media criticize proposed "identification system" for Weblogs in China - China Media Project
"As pessoas precisam aprender a expressar suas opiniões. A Internet serve a esta função de fomentar o desenvolvimento da auto-determinação. Apesar de uma linguagem rude expressar uma opinião, em geral não será persuasiva para outros. Quando alguém percebe que este tipo de expressão é ineficaz, ele irá gradualmente abandonar este caminho e buscará métodos mais lógicos de persuasão. Uma criança inicialmente usa o choro para expressar seus pontos de vista. Se quer leite, chora; se quer fazer cocô, chora; é dífícil a comunicação com ele e não se pode simplesmente mandá-lo calar dizendo: 'Você é um ignorante. Você não sabe como falar. Qual o sentido de ficar aí chorando?' Mas depois de muito chorar, ele eventualmente aprende a falar para articular suas necessidades... A natureza anônima da Internet não é benéfica somente no sentido de uma maior harmonia social, é também uma universidade para o discurso cívico. Este é o 'almoço grátis' que a Internet nos provê. Se queremos nos livrar disto, então somos mesmo muito ignorantes. É tão difícil avaliar a opinião pública em um contexto onde o discurso público é contrangido -- o discurso anônimo na Internet funciona como um polimento que ajuda as pessoas a entenderem melhor a sociedade.O tema me recorda também de um debate recente impulsionado por um post do David Weinberger onde ele apresentava a anonimidade como default na rede. Re-encontrei o link em um post que publiquei no Global Voices sobre transparência, e me parece interessante apresentar aqui a argumentação do Joho. Afinal, instituições e indivíduos não estão sempre sobre as mesmas regras no mundo real, e a web é o lugar onde 'avatares' de diversas procedências e contextos se misturam. Queremos realmente interromper esta dinâmica interativa que se desenvolve na rede global?
The Anonymous Internet is the Citizens' University. By Lian Yue.
Então, Viva a Transparência... exceto...Ainda sobre o tema, vale conferir a reportagem do IDGNow sobre implicações concretas da 'Lei de Crimes Digitais' do senador tucano. A InfoOnline montou um formulário para manifestações diretamente ao senador. Nesta hora, colegas, vamos fazer barulho pois o que está lá sendo apreciado é o típico absurdo federal.
Exceto que é importante que preservemos algumas sombras. A opacidade é a forma de anonimidade que protege os dissidentes, as mulheres que apanham dos maridos, as meninas procurando por informações sobre aborto, as pessoas que encaram sentimentos de vergonha sobre quem são, e muito mais. Anonimidade e pseudonimidade permitem a pessoas que não possuem níveis razoáveis de auto-confiança participar da web da mesma forma que as vozes mais poderosas lá presentes... Da mesma forma, algumas reuniões devem acontecer de portas fechadas. A privacidade pode ser libertadora. Existem algumas coisas que não devemos saber, e algumas atividades funcionam melhor com as luzes apagadas. É claro que ocorrem abusos, mas a anonimidade pessoal é default no mundo real -- se você vive em uma cidade grande, não somente você não conhece todo mundo que encontra, como também você não está autorizado a solicitar que se identifiquem -- e este deve ser o default no mundo online. A exigência 'de cima para baixo' por uma estrita identificação digital, que pode até parecer uma boa idéia no papel, tende a transformar o default e colocar em perigo as liberdades políticas, o crescimento de novas formas de interação social, e sentido liberador da performance pessoal. Transparência é à priori um bem para instituições, mas nós indivíduos somos mais complexos do que isso. Portanto, a onda de transparência varrendo as empresas (e governos) é saudável e importante. Diferentemente da justiça, transparência não é um bem em si mesmo. Precisamos utilizá-la de olhos bem abertos.
Transparency and Shadows By David Weinberger - Strumpette
UPDATE: o Projeto de Lei foi retirado da pauta da CCJ, ao que parece, em função do grande barulho que mídia e blogs (de direita e esquerda) fizeram sobre o tema. Mas o debate continua pois o tema certamente voltará à pauta e, seguindo a sugestão do leitor Rafa, apresento links para o parecer do relator (Sen. Eduardo Azeredo) e a íntegra do PL, e também para uma apresentação sobre as especificidades da proposta.