Na rede

terça-feira, fevereiro 01, 2011

#Egito: é a cultura digital, estúpido!!

@tomgara recebeu esta imagem em um e-mail de um amigo no egito

Escutava esta manhã à AlJazeera, via rádio web (ootunes no iPhone), acompanhando relatos ao vivo direto da Tahir Square no Cairo, capital do Egito, onde mais de 1 milhão de pessoas se aglomeravam para pedir a queda de Mubarak -- o ditador há 30 anos no poder. A ótima locutora destacava a singularidade desta revolução popular: o movimento não apresenta qualquer líderança em condições de representatividade. Com o vigoroso som dos manifestantes na praça ao fundo, cantando palavras de ordem contra o regime, a emocionada jornalista narrava a urgente necessidade de interlocutores que neste momento estejam em condições de representar o movimento oposicionista nos diálogos urgentes e necessários para a solução do impasse politico.

Devo dizer que estou fascinado com o desenrolar dos fatos no Egito, e grato pela oportunidade de acompanhar tudo tão "de perto". Twitter e AlJazeera são os principais canais, mas é muito interessante também olhar a cobertura da CNN, da BBC e até a da Globo, e assim observar as nuances narrativas, revelando os interesses geopolíticos em jogo. É sem dúvida um evento histórico de grandes proporções, que certamente irá causar grande impactos no ecossistema global de mídia. De onde enxergo, diria que se trata de um evento típico da era da cultura digital. Mas há controvérsias...

Na manhã da última sexta-feira (28/01), quando o mundo descobriu que o Egito havia sido 'desplugado' da rede mundial, eu acompanhava pela AlJazeera (e por tweets) os relatos das manifestações de rua no Cairo. Havia grande ênfase da cobertura sobre a juventude dos manifestantes, e de como a censura à rede naquele momento parecia acirrar os ânimos. Foi então que, no clima do norte da África, twitei: "Se o gov derruba a Internet, derrubemos o gov!!". Para minha surpresa, o que considerei uma provocação pertinente para o momento, virou Top Tweet e está sendo retuitado até hoje. Gerou conversas, como abaixo.

Foi o primeiro sinal de que havia uma polêmica em curso na rede sobre o 'real' papel e importância da Internet -- ou de suas principais marcas como Google, Facebook, Twitter, etc. -- nas revoluções egípcia e tunisina. Percebi também que eu inadvertidamente (e TopTweetadamente) havia tomado o lado dos ciber-utópicos. Obviamente, o momento é propício para a velha mídia 'requentar' oposições clássicas como a contenda Gladwell X Shirky, e parece sob medida para o lançamento do livro do Evgeny Morozov: "Net Delusion: How not to liberate the world". O autor, que vem encarnando o necessário personagem midiático do "caçador das ciber-utopias", é velho conhecido da comunidade Global Voices. Eu mesmo o encontrei no GVSummit 2008 em Budapeste, e desde então passei a acompanhar as trocas entre Morozov e o colega David Sasaki na rede. Um trecho de David me parece ilustrativo:

"Em abril de 2007, quando sua corrente sanguínea estava ainda contaminada com algumas gotas de idealismo, ele (Evgeny Morozov) escreveu um artigo que argumentava ser a internet a nova fronteira do ativismo pelos direitos humanos (que ótimo para ele que o artigo está fechado em uma área só para assinantes).

Mas então Evgeny corretamente aprendeu que você não ganha muita grana e nem muita atenção quando trabalha para o progresso social. Se você quer dinheiro e fama, é melhor reclamar sobre o que está errado do que trabalhar para torná-lo certo. (Muitos pundits da web e 'pesquisadores da internet' descobriram esta verdade.)

...uma (pequena) parte de mim sempre saúda Evgeny quando ele denuncia a birutice nas manchetes do tipo "a revolução será twitada", mas assim como vocês, penso que a melhor coisa a fazer é descobrir o que funciona, o que não funciona, e seguir em frente."

Ballot Fraud, the Blogosphere, and Fame-Seeking Intellectuals in Russia - El Oso (26/10/2009)

Não é minha intenção dar seguimento à polêmica(s). Compreendo o papel que o debate estilo FlaXFlu desempenha na mídia tradicional, mas de fato vejo-o como algo estéril e pouco esclarecedor. Gostaria de chamar a atenção para o que considero relevante. Ou seja, a singularidade histórica deste movimento popular que está à ponto de derrubar um dos regimes mais sólidos e duradouros no mundo, que inclusive conta com respaldo do 'império' -- este movimento simplesmente não apresenta nenhuma liderança constituída. Trata-se de uma articulação emergente descentralizada, que obviamente explorou aplicações específicas de difusão e interação em rede, e por isso o considero como um evento típico da cultura digital. Um artigo no NYTimes apresenta alguns dados interessantes:

"A maioria de nós tem menos de 30," disse Amr Ezz, um advogado de 27 anos que faz parte do grupo April 6 Youth Movement, que organizou um dos primeiros dias de protestos na semana passada via Facebook. Eles ficaram surpresos e maravilhados em ver que mais de 90 mil pessoas assinaram online para participar, assim encorajando outros a comparecer e trazendo dezenas de milhares de jovens para as ruas.

Surpreendidos pelo sucesso da mobilização, os líderes mais velhos, que representam os diferentes setores da oposição -- incluindo os proscritos da "Muslim Brotherhood"; o grupo liberal de protesto "Egyptian Movement for Change", conhecido por seu slogan “Enough”; e o grupo guarda-chuva organizado pelo Dr. ElBaradei (prêmio Nobel) -- se juntaram, prometendo reunir seus apoiadores para outro dia de protestos. Mas foi o mesmo punhado de jovens articuladores online quem continuou dando as cartas.

Protest's Old Guard Falls In Behind the Young - NYTimes

Revolução Facebook? Menos...

Facebook e twitter são elementos que compõem a cultura digital, assim como a infra-estrutura de conexões e servidores de dados que sustentam o que chamamos de Internet. Na perspectiva da cultura digital, não nos referimos ao fenômeno Internet como uma mídia específica, como o telefone, o rádio, e as TVs aberta e à cabo. Estas mídias, conforme bem apresentado por Tim Wu em "The Master Switch", obedeceram ao ciclo de evolução ("The Cycle") padrão, que em seu início se caracteriza pela abertura, pelo amadorismo e a competição, e depois paulatinamente tende à formação de monopólios proprietários fechados. Wu enxerga um caminho análogo para a Internet, na medida em que esta se move de suas origens, no tempo da inovação distribuída, veloz e 'selvagem', em direção ao domínio de grandes monopólios (Google, Facebook, operadoras de telecom, Apple, etc.).

A reflexão da Ecologia Digital parte do princípio de que a característica básica do protocolo que fundamenta a rede mundial de computadores é a abertura, ou melhor dizendo, a qualidade de ser aberto (openness). No desenvolvimento das políticas de cultura digital do Ministério da Cultura, sempre esteve presente a premissa de que a Internet foi concebida originalmente para a colaboração participativa, e não para atividades comerciais, e portanto, iniciativas de caráter público tem melhores condições de desenvolver o pleno potencial da rede em seu estado nativo.

É perfeitamente viável construir modelos de exploração comercial para a web aberta, e não à toa podemos dizer que trata-se do setor da economia que mais cresce no mundo. Entretanto, não é aceitável que a lógica do mercado venha a alterar os princípios básicos originais de funcionamento da rede, responsáveis pelos (fantásticos) efeitos de democratização / descentralização -- cerne de toda a transformação trazida pela Internet. Vale mencionar por exemplo a famosa neutralidade da rede, que viabiliza os processos de inovação generativa, os quais continuamente engendram novas modalidades distribuídas de agregação de valor nas pontas de rede.

Para caracterizar melhor este ecossistema da cultura digital, estamos nos referindo ao conjunto de possibilidades viabilizado pela acesso universal à Internet em banda larga, pela convergência das mídias digitais, pelo barateamento (democratização) do hardware digital, pelo software livre e os modelos de trabalho colaborativo em rede, pelo compartilhamento de conhecimento e cultura, pelo acesso qualificado ao acervos em domínio público, pelas inúmeras oportunidades de interação transnacional via rede, pelo remix digital, pelos modelos inovadores de participação cidadã na construção das políticas públicas e na governança... estamos falando, enfim, de cultura digital, da cultura de uso que se desenvolve em torno destas possibilidades, neste ecossistema. Este é o espaço de realização da convergência digital, onde uma rede de TV broadcast como a AlJazeera por exemplo, um arranjo típico da mídia tradicional, pode operar como elemento ativo da cultura digital.

Portanto, pegando o gancho do David (El Oso) Sasaki ao comentar sobre a postura do Morozov em relação ao potencial libertador da rede, "a melhor coisa a fazer é descobrir o que funciona, o que não funciona, e seguir em frente", ou em outras palavras, seguir cultivando o uso e apropriação das possibilidades da tecnologia digital e da rede. Enquanto política pública, este 'cultivo' deve ocorrer especialmente nos lugares e situações onde o acesso à estas possibilidades é mais restrito. Podemos dizer que esta perspectiva tem orientado a formulação da política de cultura digital no Brasil, desenvolvida de forma colaborativa na rede CulturaDigital.br.

PS: o título do post se refere à expressão norte-americana 'it's the economy, stupid!!', que evidencia a importância capital da economia quando se discute os fatores que influenciam a política. Quando Obama disputava as prévias do partido democrata norte-americano com Hillary Clinton em 2008, um op-ed no NYTimes sob o título 'it's the network, stupid!!' apresentava alguns fatos novos que poderiam alterar o cenário. Creio que estamos neste momento testemunhando acontecimentos marcantes, extremamente relevantes para a reconfiguração dos padrões de análise da conjuntura social, política e econômica. Ou seja, temos todos muito o que aprender...