Na rede

quinta-feira, dezembro 15, 2011

O Registro Unificado de Obras c/ Licença Pública: soluções possíveis para o direito autoral na era digital

Existe uma novidade importante introduzida pela Ministra Ana de Hollanda no trâmite da proposta de nova lei para o marco regulatório do direito autoral, a qual deve ser encaminhada para análise pelo congresso em breve. Trata-se da proposta do registro unificado de obras, cujo objetivo é que todo um conjunto de informações referenciais sobre o que se cria no país estejam reunidas em uma única plataforma pública. Segundo a proposta, essa plataforma será disponibilizada pelo Ministério da Cultura do Brasil e tem como perspectiva de médio e longo prazo dialogar com outras plataformas de igual propósito.

Com a introdução do registro unificado de obras, surge a oportunidade de se implementar uma licença pública, contemplando as especificidades da circulação em meio digital, a ser definida pelo próprio autor no ato de registro de sua obra. Tal licença deverá ser construída de forma a permitir ao detentor dos direitos da obra definir o grau de proteção, e / ou de incentivo à circulação, conforme sua disposição pessoal. Um vez implementada, a plataforma de registro unificado com licença pública poderá prover a necessária segurança jurídica aos autores interessados em explorar arranjos diferenciados de proteção autoral. Teremos condições, também, de gerar os indicadores necessários à avaliação de desempenho destes novos modelos, provendo informações valiosas para futuros investimentos em circulação de conteúdos no meio digital.

É importante salientar que esta proposta surge como resultado de um esforço em compatibilizar as conquistas sociais proporcionadas pela democratização do acesso à informação trazida pela Internet, com o devido respeito aos direitos de autor na rede. A idéia surge de uma prospecção interdisciplinar, integrando arranjos jurídicos, tecnológicos e institucionais em condições de promover a circulação dos bens digitais em sintonia com os fluxos típicos da rede. Tratamos também de formular um arranjo em condições de garantir a atribuição de autoria na dimensão do software, assim fomentando o surgimento de novos modelos de negócio para a cultura digital, e novas formas de gestão dos direitos de autor.

Cabe aqui um comentário sobre alguns aspectos relevantes da atual economia da rede. A internet, ao promover a idéia da livre circulação de informações, projeta um cenário no qual os serviços relativos aos conteúdos, ao invés da própria informação, tornam-se as principais fontes de ganho econômico. O modelo de livre circulação, que na prática significa “conteúdo grátis”, estabelece a “publicidade” como arranjo negocial fundamental da dimensão aberta da economia da informação.

Uma vez estabelecido, tal cenário mostra-se concentrador e refratário a novos concorrentes, pois no momento em que as redes se estabelecem fica difícil reduzir o seu poder. A efetividade do modelo de agenciamento da publicidade nos ambientes onde os conteúdos são referenciados (máquinas de busca e redes sociais) depende de escala, o que explica o crescimento exponencial de gigantes como o Google e o Facebook. Neste contexto, torna-se quase impossível pensar em uma política nacional para o ambiente digital, seja na proteção dos direitos dos criadores locais, ou mesmo na promoção da diversidade cultural brasileira na rede.

No processo de concepção do registro unificado com licença pública, partimos do princípio de que o controle de acesso aos conteúdos deixa de ser efetivo, ou mesmo possível, como modelo de negócio para a classe criativa na rede. Isto se dá porque o advento da cópia digital idêntica, com custo (próximo a) zero, estabelece uma nova modalidade, uma nova cultura de acesso à informação.

Nesta configuração em que os conteúdos se valorizam na medida em que circulam e ganham visibilidade, entendemos que é importante reforçar, jurídica e tecnologicamente, a atribuição de autoria e a expressa determinação do criador quanto aos direitos que deseja serem respeitados no acesso a cada um dos objetos digitais fruto de sua obra. A partir deste arranjo jurídico/tecnológico, estabelecido com base no modelo ‘dados abertos’, novas aplicações e serviços para promoção e/ou monitoramento da circulação dos conteúdos podem surgir, de acordo com a intenção de seus produtores.

Um aspecto fundamental do arranjo proposto indica que a base de dados do registro unificado de obras intelectuais, que projeta uma utilização aberta por parte da sociedade, deve contemplar um arranjo de governança institucional que estruture um diálogo permanente com os setores diretamente envolvidos no uso das informações contidas na base. Para atender às premissas que orientam a implementação do conceito ‘governo como plataforma’, a governança sobre os dados públicos deve contemplar instância que compartilha com a sociedade a responsabilidade sobre decisões que afetam o funcionamento do ecossistema de aplicações que emergirá a partir destas informações organizadas.

O processo de implementação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais, da forma como está proposto, poderá contribuir com insumos importantes para o detalhamento progressivo deste arranjo que contempla a organização e disponibilização pública dos dados referentes ao registro unificado, à licença pública, e aos metadados dos conteúdos da cultura brasileira. De nossa parte estaremos prontos para contribuir com esta construção coletiva, cujo desafio é arquitetar as soluções legais, tecnológicas e institucionais que possam contemplar a efetivação de um marco regulatório do direito autoral em condições de responder de forma qualificada às demandas da sociedade da informação.

Abaixo, uma breve entrevista que aborda a possibilidade de criação do registro unificado de obras intelectuais, com licença pública acoplada, à partir da perspectiva de implementação do SNIIC:

quinta-feira, dezembro 08, 2011

Gerenciamento de Identidade e dos Índices: projetando novos papéis para o Estado na era da informação


O modelo de implementação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), baseado no conceito que orienta a atuação do ‘governo como plataforma’ (government as a platform), contempla uma dimensão que consideramos estratégica. Neste contexto, o estado pode se posicionar como facilitador no processo de captação e organização dos dados do setor privado para o uso público. Em nossa avaliação, esta perspectiva aplicada ao campo da cultura oferece cenários ainda mais promissores, pois os conteúdos do setor apresentam maior capacidade de mobilizar o interesse da sociedade.

Inúmeras aplicações e serviços, além de novas oportunidades de negócios e empregos, podem surgir à partir de uma plataforma digital pública que apresenta de forma aberta (open data) dados organizados referentes à cultura brasileira. Mas para que isso possa de fato acontecer, é fundamental que o Estado aprofunde sua reflexão sobre o impacto do digital na sociedade do século 21, e se reposicione para atuar diretamente em questões fundamentais e estratégicas da rede mundial.

Neste post, chamamos a atenção para dois pontos básicos: (1) a questão do gerenciamento da identidade digital pelos usuários da rede, especialmente na sua relação com o poder público, e (2) a dimensão da gestão dos índices de conteúdos, aspecto determinante que hoje se encontra absolutamente fora do alcance da atuação da política pública. Tratam-se de elementos estruturantes da arquitetura da rede, sobre os quais ainda não houve uma reflexão qualificada a partir da perspectiva do Estado, o que de certa forma cria um déficit conceitual para o formulador de políticas públicas de cultura na sociedade digital.

Para que possamos responder às demandas que o conceito de implementação do SNIIC irá provocar, é fundamental que pensemos de forma inovadora a complexa questão do gerenciamento da identidade no ambiente digital. No campo da economia criativa em meio digital, onde a ampla circulação de conteúdos autorais e os modelos de colaboração típicos da rede tornam-se elementos estruturantes para os novos arranjos políticos e econômicos, cabe ao Estado refletir sobre os espaços de atuação nos quais seu papel qualificado configura-se como estratégico e determinante.

Nossa experiência no campo das redes sociais, e especialmente o acúmulo construído no gerenciamento da rede CulturaDigital.BR, evidencia a importância das informações de atividade (logs) que compõem os perfis dos participantes, os quais podem registrar de forma organizada os dados que irão consolidar a reputação dos usuários nestes espaços de interação digital. Nestas redes, um novo tipo de meritocracia passa a vigorar, o que incentiva o desenvolvimento de novas aptidões para a articulação em rede.

Para garantir a participação qualificada da sociedade neste novo conceito de implementação do SNIIC, está em prospecção a definição de um protocolo de identidade, que hoje chamamos de ‘ID da Cultura’.  Esta reflexão, partindo do campo da cultura digital,  incorpora os mais novos elementos da ‘indentidade centrada no usuário’ (user-centric identity), assim como modelos avançados para o gerenciamento de privacidade de dados pessoais na rede. Tal iniciativa reposiciona o Estado no exercício efetivo de prerrogativas da dimensão digital pública, as quais vêm sendo apropriadas por arranjos tecnológicos e institucionais sem qualquer vinculação com o processo político democrático.

Também no campo dos índices de conteúdos da rede, a implementação do SNIIC à partir da reflexão da cultura digital ilumina novos espaços de atuação do Estado nas questões estratégicas da rede. Neste momento em que definimos uma arquitetura de informação para a cultura brasileira, e podemos desenvolver um arranjo de metadados em condições de responder às demandas de organização de dados típicas dos sistemas distribuídos e da emergente web semântica, estaremos em condições de desenvolver uma camada de índices em condições de cumprir inúmeras novas funções para a promoção do acesso à diversidade cultural brasileira. Tais funções podem, dessa forma, ser implementadas em sintonia com o interesse público.

Uma vez que tal plataforma pode servir de suporte ao registro e catalogação de todos os processos de digitalização de acervos públicos, estamos assim criando os fundamentos para as grandes bibliotecas digitais nacionais. Esta mesma base de dados oferece também uma oportunidade única para acesso e gestão otimizadas das obras caídas em domínio público, dessa forma garantindo seu verdadeiro propósito que é o de permitir a difusão e o acesso amplo desses bens do espírito para toda a sociedade.

Publicado originalmente aqui.

segunda-feira, dezembro 05, 2011

Abertura e participação cidadã na cultura digital



O texto de Aline Carvalho abaixo documenta debate ocorrido da edição 2011 do Festival CulturaDigitalBR, no Rio. Tive a oportunidade de apresentar as ações da Coordenação de Cultura Digital, ao lado de Americo Córdula e Sergio Mamberti, dirigentes da Secretaria de Políticas Culturais do Ministŕio da Cultura. O  registro vale especialmente pela platéia de qualidade presente ao debate, e pelo inspirado live-blogging da @alinecarvalho.  
Artigo originalmente publicado aqui.




A Arena do Festival estava dedicada a encontros e discussões sobre o digital, cultura e política. No domingo, 4 de dezembro, o espaço recebeu representantes do Ministério da Cultura para apresentar o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais, e debater abertura de dados, transparência no governo e participação cidadã na cultura digital. O debate, que girou em torno da atual política do Ministério da Cultura para a cultura digital, foi apresentado pelo diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais do MinC, Américo Córdula e o coordenador de Cultura Digital José Murilo Jr. 

José Murilo inicia a discussão com um panorama histórico da Ação Cultura Digital no Ministério, e faz referência ao ex-ministro Gilberto Gil na implementação dentro do governo da ética hacker: conhecer bem um processo para poder alterá-lo. Em seguida, fala do projeto da criação de um Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais, baseado na experiência da plataforma www.culturadigital.br, criada em 2009 para promover o debate em rede na formulação de políticas públicas para o digital. “A ideia é passar do culturadigital.br para um cultura.br, reunindo o maior número possível de pessoas em torno do compartilhamento de informações sobre o que está sendo produzido e circulado em termos de cultura no país”. 

Ele acredita em uma nova forma para um sistema público de informações, baseado na discussão mundial em torno do “open data” (dados abertos, em português), mas que vá além da simples disponibilização de dados, buscando a apropriação destas informações: “o objetivo é criar um verdadeiro ambiente em rede, onde as pessoas possam criar um perfil, interagir com outras pessoas e organismos, customizar os dados disponibilizados. Queremos dar um passo além, buscando a integração de uma base de dados em um ambiente que qualifique o uso destas informações, pensando a questão da identidade, das relações sociais próprias das ferramentas digitais em rede. Trata-se de um reposicionamento do Estado a partir do que vem desta rede, como temos formulado em conjunto no movimento da cultura digital, e em espaços como este festival”. 

Murilo reforçou a importância de espaços de governança baseados no modelo multi-stakeholder, que reúne sociedade civil, governo e setor privado, como é o caso do Comitê Gestor da Internet Brasileira (CGI.br). Para ele, é necessária uma reflexão conjunta sobre como responder aos arranjos do cenário digital, retomando a responsabilidade do Estado de atuar sob uma perspectiva de fato pública. Ele observa que empresas como a Google tem ocupado espaços de interesse público na internet ao oferecer hospedagem de conteúdo e mecanismos de busca. Ele atenta ainda para a importância da interoperabilidade de bases de dados e cita a digitalização de conteúdos como uma das preocupações atuais do Ministério – que tem investido na digitalização dos acervos da Biblioteca Nacional, da Funarte e da Cinemateca Brasileira de forma a integrar o SNIIC. 

Neste sentido, é retomada a discussão em torno da Lei de Direitos Autorais, que após passar por dois processos de consulta pública, será enviada em breve para votação do Congresso. A nova versão traz a proposta de um registro único de obras culturais sob uma licença pública [inspirada na implementação do SNIIC]: “O digital traz uma interessante possibilidade de registro unificado através de um gerenciamento alternativo e customizável, onde o autor decide o tipo de incentivo que deseja conferir a circulação de sua obra”. Ele explica que “a proposta do registro é reunir a atribuição autoral, uma licença customizável e a abertura de dados em uma arquitetura integrada de aplicações e serviços distribuídos em camadas de dados – ideia esta que já vem sendo pensada há muito tempo dentro dentro das discussões da cultura digital”. 


Clique para ver o debate na íntegra do artigo.

Abaixo o último parágrafo, onde consta a importante referência à DPádua:
José Murilo encerra o debate lembrando que “tudo que a gente falou aqui é influência direta de anos de reflexão coletiva. E não posso deixar de fazer referência aqui a Daniel Pádua, uma das pessoas que teve as primeiras sacadas em relação a criação de um sistema público de interação, disponibilização e apropriação de dados e conteúdos, sob a perspectiva de uma política pública integrada ao ambiente digital. Ele nos deixou justamente no dia da abertura do primeiro Fórum da Cultura Digital, o que talvez fosse um sinal que ele estivesse passando o bastão pra gente seguir em frente com isso. Como ele costumava dizer, ‘tecnologia é mato, o que importa são as pessoas’, e é por isso que estamos aqui. Um salve a D Pádua”.