Na rede

sexta-feira, setembro 30, 2016

Haddad, Uber, e o gestor público do século 21

O objetivo do post é colocar em foco notícia divulgada no último fim de semana — “Haddad revoga resolução sobre sigilo de dados de empresas de transporte” — , a qual pode ter passado desapercebida aos interessados em temas como economia digital, a chamada ‘sharing economy’ [economia do compartilhamento(?)], e também questões de privacidade de dados pessoais, assim como políticas de dados abertos e acesso à informação. A decisão do prefeito se insere na abordagem inovadora adotada por sua gestão na regulamentação dos ‘serviços de transportes individuais de passageiros via aplicativos’. Cabe reconhecer a habilidade da iniciativa em permitir a inovação no campo, mas tratando de impor limites. Destaca-se a firmeza em buscar garantir o mais importante: o compartilhamento das informações geradas pelo uso que os cidadãos fazem destes serviços, e que são coletadas por parte do Uber e afins.
O compartilhamento de dados é o coração da regulamentação. A ideia da gestão Haddad, que chegou a ser elogiada pela Uber, é cobrar R$ 0,10 a cada km rodado nos carros das empresas. Para fiscalizar isso, as empresas teriam de compartilhar seus dados, como número de motoristas, número de clientes, número de viagens feitas e quantidade de quilômetros rodados em cada viagem. As demais empresas do ramo já cadastradas — Cabify, EasyGo, 99POP e outras — estão cumprindo as regras, e fornecendo seus dados à Prefeitura. Só a Uber não.
Haddad diz que sigilo a dados da Uber e outras firmas é irregular e manda revogar resolução — Estadão
Seguindo um padrão global de atuação, o Uber utiliza o poder de fogo de seu volumoso capital de risco acumulado para tomar de assalto mercados estabelecidos. Faz parte de sua estratégia o cortejo a políticos e burocratas através de lobby agressivo, buscando influenciar iniciativas locais de regulação. A rápida expansão global do Uber vale-se da incapacidade dos gestores públicos em regular sua atuação e taxar devidamente os lucros aferidos. Menos evidente é o fato de seu modelo de negócio basear-se na operação de algoritmos sobre enormes bases de dados compostas por informações geradas pelos cidadãos na utilização que fazem destas plataformas. Por isso a relutância do Uber em abrir seus dados.
Em 2013 a Califórnia se tornou o primeiro estado dos EUA a aprovar uma regulamentação para o ‘ridesharing’ — lei cuja concepção contou com participação significativa do Uber. Entretanto, a participação no desenho da lei não evitou que a empresa tenha descumprido cláusulas que exigem o compartilhamento de alguns de seus dados com as bases de dados públicas. Dados como o número de viagens por código postal, a remuneração dos motoristas, além de informações sobre acidentes e o número de veículos adaptados para cadeirantes. Em 2016 o Uber foi obrigado a pagar multa de US$ 7.6 milhões para violar a lei estadual que exige o compartilhamento destes dados.
Is Uber the next big thing that goes kaput? This guy thinks so. — The Washington Post
Por estes e outros motivos, a capacidade de bem regulamentar serviços como o Uber pode ser considerada um diferencial para a avaliação de um gestor público contemporâneo. Neste aspecto, o processo conduzido pelo prefeito Fernando Haddad conta com reconhecimento internacional.
..o maior truque do Uber é convencer algumas das maiores cidades do mundo que, quando se trata de tráfego, ele não existe. Mas não pense que o município de São Paulo, Brasil, está entre os enganados. A metrópole conhecida por extensos engarrafamentos propôs recentemente um plano ousado, aparentemente sem precedentes, para o gerenciamento de Uber, Lyft, e outros serviços de transportes individuais de passageiros via aplicativos, os quais ameaçam, por um lado, entupir nossas ruas de carros, e por outro, dissuadir os funcionários públicos a fazer qualquer coisa para impedir que isto aconteça.
São Paulo Offers the Best Plan Yet for Dealing With Uber — CityLab
Em uma avaliação mais detalhada publicada no site do Banco Mundial, fica evidenciado o diferencial estratégico da proposta paulistana, referente ao compartilhamento de dados.
Este regulamento proposto para São Paulo constitui uma melhoria em relação à recente e pioneira regulamentação posta em prática na Cidade do México, que cobra uma taxa fixa de 1,5% por viagem de serviços de mobilidade compartilhados. A proposta confere à cidade maior flexibilidade na concepção e implementação de incentivos para as empresas transnacionais implantarem serviços que complementam os transportes públicos e os táxis em períodos fora de pico, particularmente em áreas pouco servidas e para as populações carentes. Além disso, o decreto exige que as empresas transnacionais forneçam para o município de São Paulo dados sobre origens de viagem e destinos, tempos, distâncias e trajetos, preço e avaliação do serviço. Estes dados, anonimizados, são de valor inestimável se fornecidos em tempo real e se a cidade tiver a capacidade de analisá-los para fazer uma melhor utilização da rede viária e dos serviços de transporte que regula. Felizmente, São Paulo estabeleceu um laboratório de análises de mobilidade urbana (Mobilab) com profissionais do transporte, computadores e cientistas de dados para esta tarefa.
Sao Paulo’s Innovative Proposal to Regulate Shared Mobility by Pricing Vehicle Use — The World Bank
Ao impedir a entrada em vigor de uma resolução burocrática municipal que flexibilizava as obrigações do Uber em compartilhar seus dados, conforme estabelecido em Decreto regulamentado através de consulta pública, o prefeito Haddad mais uma vez demonstra sua sensibilidade ao que realmente importa na questão.
Na resolução emitida, o município proíbe que informações como a quantidade de motoristas e veículos a serviço da Uber se tornem públicas. Haddad não quis emitir uma posição sobre o conteúdo do parecer a falou que a comissão competente vai avaliar tecnicamente a questão. “Aquilo que for sigilo do cidadão e a concorrência tem que ser preservados, todo o resto tem que ser liberado”, afirmou.
Comissão pulou uma etapa, diz Haddad sobre sigilos da Uber — IstoÉ
A criação da Comissão Municipal de Acesso à Informação como instância intersetorial competente para promover a política de dados abertos é instrumental como complemento à abordagem inovadora da gestão. ODecreto Nº 56.519, de 16/10/2015, que "estabelece procedimentos para garantir o direito de acesso à informação", é a base legal utilizada pelo prefeito para revogar a resolução golpista do Uber. Engenhoso!
A Comissão Municipal de Acesso à Informação (CMAI) foi criada por meio do decreto no. 53.623/2012, que regulamentou a Lei de Acesso à Informação no município de São Paulo. É formada pelos titulares de sete secretarias: Secretaria do Governo Municipal (SGM), Secretaria de Negócios Jurídicos (SNJ), Secretaria-Executiva de Comunicação (SECOM), Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico (SF), Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão (SEMPLA), Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e Controladoria Geral do Município (CGM).
Comissão Municipal de Acesso à Informação — CMAI
É importante acompanhar a implementação da regulamentação proposta pela gestão do prefeito Fernando Haddad em São Paulo de modo a aferir seus resultados e consequências. Entretanto, já podemos afirmar que sua abordagem está em sintonia com o que se espera de um gestor público do século 21.
Como os usos da inteligência artificial seguem em acelerada expansão, a sociedade cada vez mais enfrentará questões e demandas em torno do poder que essas tecnologias podem e devem ter. À medida que avançamos para a regulamentação, precisamos questionar as narrativas oferecidas pelas empresas, e certificar-nos de que a política reflete a realidade.
The Mirage of the Marketplace: The disingenuous ways Uber hides behind its algorithm. — Slate

“Na sociedade em rede, os dados produzidos pelos cidadãos, ou em seu nome, são a força motriz da economia e da nação — o [Estado] tem a responsabilidade de tratar esta informação como precioso recurso nacional”

’SNIIC, uma plataforma para o século 21’